Adalberto



Assim como o desejo dele aumentava à medida dos seus avanços, mais insinuados eram os olhares, a troca fugaz de pensamentos semelhantes tenderia inevitavelmente a realizar-se por meios físicos. Entrementes, entre o desejo, os olhares e os pensamentos, estes não eram senão a expressão daqueles, muita água correria no rio.
                Adalberto não era de parcimónias. A despeito de gostar dos jogos de sedução, entediava-se facilmente com a espera. Esperar não ia com ele. Era homem prático, não teórico. Dizia sempre que a teoria era para quem não tem mais que fazer. Os homens querem-se práticos. Simples nos afazeres e de espírito. Quem pensa doutra forma que vá para o raio que o parta. Arre! Paciência não é virtude. Virtude é lograr o que se deseja com esforço mas sem teorias. E Adalberto lograria o que desejava.
                Entre a secretária de ambos havia outras três. Uma do chefe, cuja cara áspera denotava quotidianamente as noites mal dormidas. Outra correspondia ao adjunto do chefe. Um fulano cuja conduta de vida se regia por princípios assaz cristãos. É notório que com este ela não haveria de querer nada. A última dizia respeito a um empregado tal como Adalberto, mas com as devidas dissemelhanças, porquanto a personagem que aqui se trata é homem de prática, como se aprouve dizer acima, e o outro, cujo nome não fora dito porque de relevância pouca para o que se está a contar, era antes um homem escrupuloso, metódico e sobejamente teórico. Em suma, o que os separava não era o desejo, que esse ultrapassa tudo e todos, morre, nasce e sempre é o mesmo eternamente, infinitamente jugulando, mas antes essas três insignificantes secretárias com insignificantes carantonhas.
                Hoje sentia-se uma tensão sexual forte entre ambos. Adalberto, que estava com muito trabalho em cima da secretária em virtude de estes dias andar demasiado distraído com outra coisa, justamente esta que agora se desloca para a casa de banho com intuito de ver se ele ousa ir atrás dela, levantou a cabeça e viu o que aqui se acabou de contar, a dita senhora a deslocar-se para a casa de banho, e correu-lhe o mesmo pensamento, mas assim como veio se foi, com muito pesar, porquanto não arriscaria a perder o emprego por uma ida à casa de banho, ainda que saibamos que o que ali se iria obrar não era coisa pouca e ai daquele que diga que não gosta, que logo é apelidado de mil coisas. Desesperou, como todos desesperam no desejo. Volta ela, a senhora de cujo nome ainda se não falou e se crê não se vá falar, com cara de má, de quem não satisfez o que satisfeito deveria ter ficado, e senta-se. Olham-se; mas o olhar dela é absolutamente reprovador. Que raio, eu é que deveria reprovar o que ela me tentou fazer, e está ali com cara de quem tem razão. Olha-me este a olhar, não vieste?!, não comeste!, e agora não comerás. Não falta quem queira comer. E assim, por momentos, ambos decidem um basta, que se por ora pensam-no definitivo, o futuro dir-lhes-á que nada há neste mundo que seja definitivo.
                Faz-se já horas de cessar o trabalho e Adalberto principia as arrumações sobre a secretária com vista a ir para a sua casa, que o espera desde manhã, se há coisa mais fiel neste mundo são as casas, deixamo-las todos os dias mas sempre esperam por nós, sem refilar, sem ataques de ciúmes, sem perguntar sequer o que quer que seja, não sabemos nós o que no seu íntimo vai, e outros há que estarão a pensar que o mesmo se poderia dizer da cama, mas esquecem-se que esta é vingativa demais porquanto não raro nos dá mau dormir. Levanta-se da secretária, olha o chefe, na espera de que este dê consentimento para se poder ir embora, e fita-a com olhos que perguntam vá lá deixa-te de coisas, o que lá vai lá ficou, e se hoje não é outro dia é pelo menos outra noite, e ela responde-lhe silenciosamente bem que podias vir ter comigo, já se me passou o sucedido de há bocado e apetecia-me dormir contigo esta noite. Mas nem um nem outro leram o que aqui se escreveu, muito menos o que ali se pensou, e ambos se deslocaram, frustrados, para as suas casas.
                Dissera-se acima que as casas são sempre fiéis, por descuido do autor, pois se as há e grosso modo o são, ressalve-se porém que ocasiões houve há e haverá cuja fidelidade, por força da natureza mais do que pela infidelidade, se é que infidelidade não seja ela também intrinsecamente natureza, nem sempre se cumpre. Não é contudo o caso da casa de Adalberto, que esta aqui se mantém, firme, ansiosa por seu dono, este que lhe acaricia neste momento a sua porta e entra nela como ousaria haver entrado na casa de banho a fim de entrar igualmente não numa porta mas em algo que sabemos que entrará não tarda nada, se o destino, que por ora nos leva nessa direcção, não fizer das suas. Que o destino nem sempre é certo, diga-se de passagem e intrepidamente. Deita-se Adalberto na cama, exausto do trabalho e de muito pensar e inescapavelmente retorna a pensar, se é que pensar já não estava, porquanto pensar é viver, se não a própria vida. Relembra a situação da tarde, o olhar insinuante, provocador, a ida à casa de banho e o medo de fazer o mesmo, e bem assim o medo que surgiu em ser despedido, e agora que faço se não houver outra oportunidade, que sói dizer-se que o comboio só passa uma vez, e aquilo não é um comboio mas uma grande camioneta, e se acaso era areia demais para o meu tractor jamais irei saber, raios partam tudo isto. E com estas lamentações já Adalberto jantou, deu uma espreitada nos canais de televisão, e assim verificou que o mundo é mais do mesmo, está sempre a mudar mantendo-se porém tudo na mesma, e chega enfim a hora de se deitar, que o espera amanhã outro dia, se nada de mais acontecer durante a noite, que esta é imprevisível.
                Dormiu muito mal, e não é necessário expor as razões das insónias, mas a manhã já veio, não tarda vai-se, e quem se vai agora é Adalberto para o seu trabalho, que o espera desde que o findou ontem. Apanha o autocarro na rua de baixo, que é sempre onde o apanha, se não é este a apanhá-lo, demora meia hora de percurso e enfim já se encontra a entrar no escritório para mais um dia de terror; perdão, de labor.
                Ela, pensa Adalberto, ainda não chegou. Mas vai chegar, não te preocupes, não tarda nada está aí e o que sucedeu ontem repetir-se-á hoje, amanhã e depois de amanhã e só terá o seu fim quando finalmente o que tiver para acontecer desde o início do que aqui se relata tiver acontecido. Deus de te ouça! Não sei quem seja esse, mas se a mim me fora incumbida a tarefa de te pôr em cima dela, assim será. E tanto é que vai ser já de seguida. Desloca-te à casa de banho, ou não estás com vontade de lá ir?, estou, sim!, então não demores porque se o comboio passou uma vez e diz o ditado que não passa segunda, eu ta concedo, a segunda, mas aproveita-a, assim seja! Enfim, ela lá se encontra, ele lá entra, ambos se vêem, ambos se sentem, os olhares já não são insinuados mas antes se concretizam, e Adalberto sente por fim o que tanto almejava, não pressentindo porém ele que esta será a última vez em que tudo sentirá…

               

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