Beatriz



Mas porquê isso e não o contrário? Afinal, tudo procede do contrário. Ou, se assim não sucede, as mais das vezes assim o pensamos. Talvez, melhormente pensando, tudo proceda duma igualdade desses contrários. Ou duma diferença igual desses contrários. Desta forma intrépida, quiçá dum espírito que não queria senão contrariar as coisas, sabendo ou não a certeza do que afirmava, surge-nos Beatriz. Garota que ultrapassara já os seus dezasseis verões, mas não dezasseis invernos, intrépida como já se dissera, e bem assim intuitiva mais do que sensível, intempestiva quanto baste, altiva mas não arrogante – e para o leitor incauto que se está a dizer que altiva e arrogante são uma e a mesma coisa, atente-se ao que dizem os dicionários, pelo menos os bons?!, que atestam altiva primeiramente como dotada de brio, dignidade e ilustre, outrossim que demonstra magnanimidade, generosidade e nobre, antes dessoutra de arrogância, soberba e afins. Vá-se lá entender estas palavras que ora nos dizem uma coisa, ora outra, justamente o seu contrário, ainda que possamos ver pessoas generosas e com todos aqueloutros atributos e serem igualmente arrogantes. Acaso estar-se-á a ser injusto para com as palavras, porquanto se algo de errado há nelas deve-se tanto mais a quem as dicionariza desta forma quanto a quem as usou erradamente, que enfim estes é que dão o ensejo àqueles. Mas é de Beatriz que se fala, e desta garota nos ocuparemos.
                Aqueloutras palavras supraditas foram retorquidas ao seu professor quando este lhe dissera que há o bem e o mal e que só aquele, o bem, deve prover a justiça. O professor, espantado, sem palavras e porque não pretendia proceder ali a um debate, fez palavras moucas, prosseguiu o seu raciocínio e quando deu por terminada a aula apenas disse um até amanhã Beatriz, não sabendo porém se o amanhã a traria de volta, ao que a jovem não respondeu senão com um aceno de mão.
                Recordara-se do que havia dito quando caminhava a pé para casa, mas já nada daquilo lhe fazia sentido, estando agora mais inclinada a pensar no que iria fazer logo à noite do que nas aulas chatas do professor. O que pensava ficava onde fora dito. O dito, porém, a despeito de não lograr mais sequer ser pensado por Beatriz senão no percurso para casa e por raríssimos segundos, sê-lo-á pensado seguramente por outrem. Assim procedia Beatriz, vivendo mais sob um pano negro do futuro do que passado. E por justamente assim viver, Beatriz encontrou já entretenimento, qual é o de estar neste efectivo momento a divertir-se com as amigas num bar, olhando tudo e todos, gozando de todos e de tudo e buscando acaso algo no todo e no tudo. O bar estava repleto, conquanto vazio de vida, se a isto que aqui se faz se pode chamar de vida; um copo, mais outro e outro ainda, e se este não chegou venha daí outro que o tempo está a passar e eu a não dar por ele, por isso deixa-me vivê-lo agora mesmo, e se é certo que o tempo é sempre presente não poderemos deixar de afirmar que ali ele estando presente ninguém o está sentindo, pois como se poderia sentir o tempo quando já se não sentem a eles próprios… Beatriz ia já no seu sétimo copo, daqui não se vê o que bebe, mas pela estrutura dos seus olhos, semi-fechados, parecendo dormir, o levantar do braço quase a custo, umas três quatros cinco idas à casa de banho vacilando, e ainda agora volta e parece querer voltar novamente, uns tantos cigarros fumados, e outro na boca, se poderá dizer que não está desalinhada com os que aqui se encontram: estão todos bem desalinhados!
                Sendo a noite igual a muitas outras, dir-se-ia que esta não foge à regra, porquanto Beatriz desloca-se a uma mesa que se encontra do lado oposto à sua e sob uma tenacíssima embriaguez, que faz destas imprudentes coisas, dirige umas palavras ao rapaz de cabelos longos e pretos cuja cara manifesta já um sorriso de quem sabe o que o espera. Olá, posso sentar-me, diz a garota intempestiva, acenando um sim o rapaz de cabelos longo e pretos. As amigas de Beatriz, como sói nestas ocasiões, riem-se, porém não estranhando pois conhecem-na bem, e invejam-na, como é apanágio das mulheres, que a amizade feminina é feita destas coisas: inveja, intrigas, facadas, que por vezes esquecidas na cabeça subsistem perpetuamente no coração, mas sempre fiéis umas às outras, visto que há alianças que são inquebrantáveis e a irmandade jamais pode ser posta em causa. O rapaz, cavalheiro, pede um copo para a menina que se acaba de sentar, esta agradece sorridente e principia um diálogo titubeante, imperceptível quase, falando por ela o álcool mais do que a razão. E justamente porque a razão está a falhar, quantas vezes nos não falha e outras nos atrapalha, já a mão do jovem de cabelos pretos e longos se insinua nas pernas de Beatriz, e diga-se que o jovem rapaz conta apenas com mais um verão do que ela, e do mesmo modo com que se insinua rápido chega onde pretende, e Beatriz acena vamos sair daqui e o rapaz diz seja feita vossa vontade, e para os religiosos que aqui vieram dar e leram estas palavras, perdoem-se-mas, porquanto quem as escreveu não partilha da mesma razão.
                Destarte, os dois jovens saem do bar, para onde ainda se não sabe, e caminham sob noite densa, fria, que o Outono já entrou, árvores despidas e cadavéricas, e esta aqui se mexeu com o vento e assustou Beatriz, mas o seu jovem de cabelos pretos diz olha que foi só a árvore, não devias ter bebido tanto, e ela responde olha quem fala que bebeu mais do que eu, mas para onde vamos nós afinal, não sabemos mas lá chegaremos, que o destino assim nos guie. Não era, porém, noite de se andar na rua, não só pelo frio que se fazia sentir mas porque sob a escuridão densa da noite um ar inóspito expressava sobremodo um escopo de trevas. Beatriz e o jovem de cabelos longos pretos, ainda assim, alheios aos sinais da natureza, prosseguem a sua caminhada na demanda de um sítio que os acolha a fim de não se sabe o quê, conquanto quer um, quer o outro encerrem já em mente o que pretendem realizar.
                Beatriz, já se disse, era intempestiva mas pouco sensível, agia por intuição e impulso sem pensar nas razões, nos porquês, no certo ou no errado, acaso resultado duma educação desprovida de moralismos atávicos proveniente duma família que preserva o lema: faz mas nunca te arrependes; enfim, uma família assaz desconvencional e cujos ensinamentos, a par com leituras por ela própria procuradas e fornecidas pelos pais, fizeram dela a jovem que se nos apresenta aqui. E é com esta intemperança que Beatriz entra num armazém abandonado com o seu jovem de cabelos pretos e longos e ambos se deslocam para um sítio escondido propenso a realização de actos que se não vão relatar aqui, porquanto do íntimo dos dois, e na intimidade alheia não se entra.
                Passavam das cinco da manhã quando o senhor Jean Jacques, que se achava a dormir com a sua mulher Mariana Medeiros, recebe um telefonema: Senhor Jean, daqui fala do hospital e estamos a telefonar ao senhor a fim de o informar que a sua filha deu entrada há meia hora neste hospital e que urge que o senhor se dirija para cá quanto antes. A mulher nem deu fé de o telefone tocar. Jean Jacques, que era homem calmo, deu um salto da cama, vestiu-se com uma celeridade como nunca, e estava a sair da porta quando Mariana Medeiros lhe pergunta, homem onde vais, e ele responde, venho já mulher, deita-te e descansa. Não queria, evidentemente, perturbar a mulher. Mas ele, porém, já estava perturbado bastante.
                No percurso para o hospital pensou no que teria sucedido, uma vez que não ousaram dizer-lho pelo telefone, e da mesma forma que pensava tal não foi difícil pensar no remorso que sentia em ter predicado certos ensinamentos perniciosos à sua querida filha, que agora se encontrava no hospital sabe-se lá como e por que razão. Francês de nascença, mas a viver em Portugal há doze anos, provinha duma cultura cuja convulsão social de outrora o fizera adoptar um estilo e lema de vida que agora estava a pôr em causa. Era sequaz dessoutros filósofos franceses de Maio de 68 cujas filosofias subsistem ainda hodiernamente. Mas diga-se com justiça que essoutros filósofos são acaso do melhor que a filosofia logrou. Sequazes igualmente de um vulto da filosofia do século XIX, Nietzsche. Assim procede a filosofia, enfim: umas influenciam as outras e assim sucessivamente. Mas não percamos de vista o senhor Jean, que neste momento se encontra a entrar no hospital e pergunta onde está a minha filha, chama-se Beatriz e telefonaram-me há minutos a dizerem-me que aqui se encontrava, ao que a secretária, mulher com cara de menina, loira e sobejamente bonita, responde espere um minuto que chamo o doutor. Dito e feito e este aqui se encontra a dizer senhor Jean, a sua filha está bem, tem apenas umas escoriações e estamos a proceder apenas a mais uns exames com vista a saber, e lamento o que lhe vou dizer, se foi violada. Como, interroga o senhor Jean, e o doutor explica-lhe Senhor Jean a sua filha deu entrada aqui no hospital com indícios de que foi violada, mas ainda se não sabe a certeza, daí lhe haver dito que estamos a realizar os exames, e o senhor Jean, com uma raiva que quase não conseguia conter, indaga o que se passou, o que fizeram à minha filha, e o doutor responde não lhe posso dizer o que sucedeu senão que com ela deu entrada aqui igualmente um rapaz mas este infelizmente já sem vida e se pretender mais informações a polícia encontra-se ali para lhe responder a essas perguntas. Jean Jacques desloca-se então até aos polícias que tinham acorrido ao local onde o que aqui ainda se não sabe ter acontecido sucedeu, e estes afavelmente lhe dizem que receberam um telefonema a dizer que tinham ouvido disparos perto dum armazém abandonado e que quando lá chegaram viram a sua filha perto do jovem rapaz de cabelos longos e pretos a chorar ao lado do jovem e que este tinha sido baleado com três tiros na cabeça no qual resultou, como esta bem de ver, a morte do já falecido. Não sabemos, ainda, diz a polícia, o que terá sucedido, mas tudo leva a crer que ambos se tenham deslocado para o armazém horas antes, como sabe os jovens têm destas coisas, e que alguém os viu, sabe que naquele zona anda muito marginal, e o resto enfim o rapaz foi baleado, porventura fez resistência, e a sua filha, que se encontra bem, se é que se pode dizer que alguém se encontra bem depois de se presenciar a morte de outra pessoa, está a realizar exames para procedermos ao resto da nossa investigação.
                Jean Jacques não fez outra coisa senão esperar, ainda que custosamente e com uma angústia que eram facadas bem fundas no âmago do seu coração, até que finalmente pôde ver a sua filha e saber dos resultados dos exames por esta feita, resultados que não manifestavam sinais de violação, de sexo sim, mas não de violação graças a deus nosso senhor que estais no céu e cuida de nós, mas não cuidou daquele pobre rapaz, que deus para dar a uns tem de tirar a outros, se isto já não fora dito de sobejo, e aquilo que se escreveu não foi por conversão momentânea do autor ao cristianismo mas antes proferido pelo senhor Jean Jacques que de ateu convicto subitamente se converteu a essoutro que está no céu para bem de todos nós, menos daqueles a quem tira a vida.



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