Elmano





Por toda a sala encontravam-se garrafas de uísque e beatas de cigarros que faziam companhia aos quadros de Lucien Freud e Francis Bacon, que estavam dependurados em duas das paredes da sala, e ao livro O Fantasma de Harlot, de Norman Mailer, que estava em cima de uma pequena mesa. O cheiro a tabaco impregnava toda a sala. Elmano havia passado a noite a ler o livro de Mailer acompanhado de uísque, cigarros e cocaína. Era hábito seu este de passar as noites enfrascando uísque enquanto lia um livro e consumia cocaína. Mas havia uma semana que o fazia todos os dias e que não dormia. Sentia-se exausto e porém sem sono. A cocaína, pensava ele, talvez lhe tirasse o sono. Mas como abdicar dela, indagava-se. Provocava-lhe uma boa sensação quando acompanhada de uísque e uma boa leitura. Sentia-se, enfim, apesar do cansaço, que estava a aproveitar a vida, não a desperdiçando a dormir, ou em coisas inúteis. De saída de casa pela manhã, após um duche, e um cheiro de coca, era como se tivesse dormido horas. Com energia suficiente para enfrentar mais um dia.
Elmano era visto como um bom rapaz, pacato e metido na sua vida, contrariamente aos seus vizinhos, amigos, colegas de trabalho e, pensava ele, contrariamente a todos, porque no geral todos são uns metediços, todos não, dizia, porque eu não sou, e basta um para não se aplicar o quantificador. Trabalhava numa firma de advogados e exercia a sua profissão há meia dúzia de anos, após haver concluído o curso em direito. Elmano seguira os passos do pai, também ele, antes de falecer, advogado. O seu pai fora um dos melhores advogados do país, granjeando fama nos anos 90 em que fez a defesa de um assassino que havia matado toda a família. Fora esse caso que levara Elmano a seguir advocacia, mais do que a influência do pai.
Estava encarregado da defesa de um caso de roubo de quadros valiosos, cujo arguido, de boas posses, contratara a firma para o defender. Elmano acreditava no arguido, por tudo que este lhe havia contado, e por um instinto – e não só. Depois de meses a acumular provas que inocentariam o arguido e de tanto arguir, hoje era o dia da sentença final, que, esperava, seria a da absolvição. E, com efeito, assim sucedeu, o tribunal decidiu em favor do arguido.
 Elmano e o inocente, há pouco arguido, tinham-se dado bem desde a primeira vez que se conheceram, coisas em comum os ligavam, como sejam o gosto pela literatura, música e coisas afins. Sentira, desde o primeiro dia, que deveria defender o pobre inocente, que o estava, sabia o próprio e sabia-o Elmano, e tudo fizera para o defender escrupulosamente. Empenhou-se todos os dias em trabalhar com afinco para arranjar provas de defesa, posto que o desfecho só poderia ser aquele.
Após abraços, alegrias e felicitações saiu do tribunal acompanhado do agora inocente, e por assim sê-lo assim ficará, pois que o autor assim o deseja, e, dizíamos, saía do tribunal aliviado por mais um caso resolvido, mais uma vitória conseguida, e perguntou ao inocente se lhe não apetecia ir beber um copo para festejar esta batalha acabada de ganhar, um uísque sabia-me bem agora, e o inocente anuiu e ambos foram comemorar, e bem mereciam.
Irish Pub era o nome do local onde foram beber um copo, vários diga-se com justeza, pois era sítio onde havia bom uísque, quando duas jovens raparigas se lhes juntaram metendo conversa, e não se fizeram rogados, conversaram de tudo um pouco, como quem diz, coisa e tal para aqui, coisa e tal para acolá, e chega-se e são horas de sair do Pub, e agora onde vamos, perguntou uma das jovens raparigas, ao que responde Elmano, que tal para minha casa, tenho lá umas garrafas de uísque por abrir, e porque não, demos uns cheiros de coca, brilharam os olhos das jovens rapariga, habituadas que estavam a estas coisas da noite, torceu um pouco o nariz o inocente, não porque não quisesse mas porque se sentia cansado, mas ganhou a perseverança de Elmano, que não dormindo há uma semana estava aqui como se tivesse dormido uma.
Já tocados um pouco do que se bebera, chegaram os quatro à casa de Elmano entre galhofas e apalpões. A noite prometia, pensara Elmano, que a despeito de gostar estar só com os seus livros acompanhado de uísque e coca fazia dias que desejava um pouco de movimento na casa. E movimento houve que chegasse.
O inocente ficou deslumbrado com a biblioteca que o advogado possuía, metade são meus, outra metade é do meu falecido pai, dizia Elmano, ao passo que o inocente dizia não tenho metade da tua metade, mas ainda são alguns, e nisto dissertavam as raparigas sobre roupas e noites, e esperavam todavia que a verdadeira noite se concretizasse, pois afinal fora para isso que saíram. Mas ainda tiveram de esperar, porquanto a conversa tornou-se um pouco mais séria após uns cheiros de coca e uns goles mais de uísque. Sartre era um plagiador, dizia o inocente após ter verificado na estante que Elmano possuía o livro O Ser e o Nada, roubou as ideias à Simone, algumas a Hegel e Husserl, é o que se conta, e era um porco, seja na sujidade, seja psicologicamente, e, pior ainda, foi um indivíduo que ora estava com o nazismo, ora se juntou ao comunismo, sabia bem em que lado estar quando lhe convinha, mas isso hoje, tal como nessa época, parece ter-se esfumado, e vê-se nele o último intelectual verdadeiramente do século XX, e Elmano retorquia, não sei se é bem assim, mas seja como for foi um indivíduo que deixou marca, Ora, preferia morrer a ser um porco sujo plagiador, Não sejas assim, fazem falta Sartres, fazem falta, Preferia antes mil Kerouacs e todos os que com ele andavam, desde o Ginsberg ao Burroughs, do que dois mil Sartres, Pois bem, deixa-me que te diga que esses também eram uns ricos trafulhas, diziam-se contra o sistema, seja lá o que isso for, apregoavam mil e uma coisa e no entanto pelo menos no que concerne ao Kerouac acabava por pedir dinheiro à tia, à mãe, enfim, a bota não batia com a perdigota, são todos uns heróis quando se tem dinheiro para andar aí na folia a apregoar e reivindicar isto e aqueloutro, ia assim a conversa de ambos ao passo que as jovens raparigas se contentavam com cheirar coca e ansiavam que terminasse a conversa sobre aqueles nomes que nunca ouviram falar.
O inocente levantou-se para ir à casa de banho, Elmano fez mais uns riscos, cheirou e deu a cheirar, as raparigas aproximaram-se um pouco, uma deu-lhe um beijo na boca, a outra acariciou-lhe os cabelos, e nisto chegou o inocente, que não fez pela demora e se juntou à festa, umas mãos aqui, umas línguas ali, e assim se foi desenrolando o que tanto elas esperavam e procuraram, e não tardou que fossem oito da manhã, e Elmano, porque já não dormia há uma semana, de repente sente-se extenuado, encosta-se ao sofá e adormece finalmente.
Passava o ponteiro das oito da manhã quando Elmano acorda, oito da manhã do dia seguinte, esteve assim o nosso advogado a dormir vinte e quatro horas, que bem precisava e não chegavam para colmatar a semana em que não dormiu. Zonzo por muito dormir, sentiu vontade de urinar, deslocou-se à casa de banho, e quando saca do pénis para urinar, ou mijar como em bom português, pressente que algo não está bem na sala, e ainda com pénis a salpicar desloca-se apressadamente para a sala, e eis quando lá chega não se apercebe do que está mal, embora o pressentimento se encontra nele ainda, olha em volta, garrafas de uísque por todo o lado, beatas de cigarros não menos, umas cuecas de mulher no chão perdidas, o livro do Mailer na mesa juntamente com o do Sartre, e coça a cabeça para pensar melhor um pouco, e eis que a levanta e olha a parede em frente e aí está o que procura, o pressentimento que tinha, a falha que encontrou quando se levantou para ir à casa de banho, o quadro do Lucien Freud lá se não encontra, apenas uma parede como tantas outras, e olha para a do lado, e também nessa se não encontra o quadro de Francis Bacon, larga a mão da cabeça, sorri e desloca-se para o sofá sorrindo ainda, senta-se nele defronte à parede órfã do quadro de Francis Bacon, e com a cara a sorrir adormece novamente. 
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Domo Ferrara






Nado e criado numa vila cujo nome poucos tinham ouvido falar, Domo Ferrara tornara-se no homem da vila. Seu nome fora espalhado por toda a vila e não havia, mesmo nos mais incautos, quem o não conhecesse. Distinguira-se já havia tempos na arte de bem falar e escrever. Era-lhe solicitado com frequência que lesse as cartas, que as escrevesse, e sempre o fazia com alegre disponibilidade. Senhor Ferrara, o senhor tem o dom da palavra como poucos, dizia-lhe a senhora Josefina, Não creio, senhora Josefina, o dom é algo que se busca e eu nunca o busquei, nada nasceu senão o meu corpo, Não seja modesto, senhor Ferrara, Não é modéstia, senhora Josefina, é antes a verdade, nada mais nasce connosco senão o corpo, tudo o resto é fruto do labor árduo de cada um, e agora tenho de ir-me porque outras pessoas me esperam, fique com deus e senhor a acompanhe, Ele está no meio de nós, respondera-lhe a senhora Josefina menos de intenção do que pelo hábito.
Domo Ferrara tinha de passar na tasca do senhor Gonçalves, que o esperava outrossim para ler umas cartas que lhe haviam chegado, e estava chegando quando o senhor Gonçalves se preparava para servir três dos seus habituais clientes. Fizeram-se as habituais cortesias, como está o senhor, bem obrigado, e o senhor, vai-se como se pode, nem pior nem melhor, assim assim, que esta vida nos não dá nada, mas também me não posso queixar, haja saúde pelo menos, ora aí está uma verdade sim senhor, Que dizem as cartas, uma é da sua filha que diz que está muito bem na casa dos Vilaças, é muito bem tratada a despeito de trabalhar muito, Que dê graças a deus nosso senhor os Vilaças lhe terem dado guarida, porque aqui já não havia muito espaço, a casa é pequena e as crianças já são grandes, Pois, entendo-o, E a outra, Ah, a outra é do seu João, vai-lhe dar um neto, menos de uma semana está para nascer, Fez-se homem o meu João, já vai para o terceiro e não se deve ficar por esse que ainda está para vir, Saiu ao pai, Pois, sim, tem de ser, homem que é homem tem de deixar descendentes, e quantos mais melhor, o senhor é que não ata nem desata, ai, desculpe, saiu-me, não o pretendia ofender, tenho a língua ao pé da boca, Ora essa, então a língua não está na boca, Pois, sim, queria dizer antes a língua ao pé do coração, Não faz mal, homem, não se preocupe, nem com isso nem com a minha vida, e agora vou-me que tenho ainda muito para fazer, até amanhã, Muito obrigado senhor Ferrara, e este lá se fora para mais um lugar onde lhe haviam de perguntar o que diziam as cartas, que tristezas e alegrias traziam, uma e outra vez, sempre e quase sempre a mesma coisa, porque esta gente é de poucas palavras e mais de sentimentos.
Domo Ferrara chegara a casa eram já dez para as onze da noite. Sentia-se cansado, um pouco desorientado nessa noite. Uma sensação estranha invadira-o durante a tarde após ter saído da casa da senhora Joaquina. Não raras vezes sentira-se estranho no seio daquela casa. Pensara por diversas vezes por que sentia aquele ar, e respostas até hoje as não tivera. Nessa noute teria um pesadelo com essa casa cujas paredes escuras de negro do fumo da lareira dançariam (in)sinuosamente escancarando-lhe na sua mente as trevas da noute e fá-lo-iam acordar transpirando de todo seu corpo. Bebera um copo de água enquanto se sentava na cadeira pensando no pesadelo que o intranquilizara. Eram uma e treze da madrugada e não fazia duas horas que se tinha deitado. Recomposto um pouco do que o atormentara, decidira ir-se deitar. Pensou e fez.
Já a manhã tinha acordado fazia duas horas quando Domo Ferrara se levantara e se preparava para tomar o pequeno-almoço e a recordação do pesadelo lhe viera à cabeça. Indagava-se por aquele pesadelo, qual o seu significado, porquê aquela casa, e novamente não obtivera respostas. Tomou o leite com um pão e manteiga e por fim um café. Saiu de casa eram já onze da manhã. Nesse dia tinha de passar pela casa do senhor António, não esquecer a senhora Clementina, parar na tasca do senhor Gonçalves, e se o tempo ainda permitisse, dar um salto à casa da senhora Joaquina, porquanto resolvera tentar perceber por que o incomodavam aquelas paredes.
O senhor António, homem de família grande como era hábito naquela época, possuía uma pequena mercearia que abastecia toda a vila. Homem de bom trato, acolhedor em demasia, era difícil lhe não encontrar um sorriso. Quando se lhe perguntava por que andava sempre alegre, dizia, em tom jocoso mas acolhedor, porque era contente. Conhecia Domo Ferrara desde os tempos de criança quando brincavam ambos a escavar buracos deitando-lhes água lá para dentro e depois os tapavam de forma que enganassem os demais colegas quando por ali passassem e enfiavam os pés no buraco cheio de água. Não havia vez que se não rissem dessa brincadeira. Então António, como vais, Bem, Domo. Passei por cá para te dar uma palavrinha, pode ser, Claro, Domo, Esta noute tive um pesadelo violento, sonhei que estava na casa da senhora Joaquina e que ela tinha uma cabeça muito grande, do tamanho de três abóboras, e eu a estrangulava com as minhas mãos, nem sabes como me senti, acordei a transpirar por todo o corpo, aquela casa dá-me arrepios quando lá entro, a ti não, Tónio, Lá que aquela casa não é muito acolhedora, não, mas nunca me deixou ao ponto de ter esses pesadelos, Pois, Tónio, não sei, saio sempre de lá inquieto, algo me deixa transtornado, Pode não ser nada, deixa para lá isso, Ferrara, são cousas que sucedem mas que não têm explicação, Talvez tenhas razão, tenho de ir, tenho de passar na casa da senhora Clementina e depois na Tasca do senhor Golçalves, inté mais logo, Tónio, Vai lá, Domo, deus te acompanhe, Ele está no meio de nós, Assim o esperamos, assim o esperamos, e lá se foi Domo Ferrara em direcção à casa da senhora Clementina.
A senhora Clementina já o esperava sentada na sua cadeira ao sol, olhando o horizonte, pensando não sabe bem em quê e porquê, e Domo Ferrara chegara, Como vai, senhora Clementinha, Ai, senhor Ferrara, não muito bem, estes dias têm-me doído o corpo todo, a idade não me tem perdoado, queixas de quem tem menos para dizer do que sentidas as palavras, Pois, senhora Clementina, nós passamos pela vida e não ela por nós, já alguém o disse, penso eu, e nesse instante pensa que de facto a vida passa mesmo por nós e não o contrário, pois ela aí continua quando nós deixamos de aí estar, dá um safanão interior à cabeça como para voltar à realidade, e estava a senhora Clementina a perguntar-lhe se trazia notícias, A sua filha manda dizer-lhe que está tudo bem com ela e com os filhos seus netos, que não tarda passará por cá mas que por ora não tem podido devido ao mui trabalho que tem tido, Ah, essa moça é trabalhadora, já se não pode dizer o mesmo do marido bebedolas, veja lá que raio de genro fui eu arranjar, Não é mau rapaz, o problema é mesmo a pinga, senhora Clementina, mas olhe, tenho de ir, que ainda tenho de passar na tasca do senhor Gonçalves, Vá lá à sua vida, não se atrase por minha, Inté, senhora Clementinha, Vá com deus, Ele está no meio de nós, É capaz, é capaz, disse a senhor Clementina.
Ia já em direcção à tasca do senhor Gonçalves e ainda lhe ressoavam na mente as palavras da senhora Clementina, é capaz, é capaz, quando se  decidiu mudar de propósito e ao invés de ir passar pela tasca do senhor Gonçalves, preferiu antes passar primeiro pela casa da senhora Joaquina, quero saber o porquê daquele pesadelo, e tem de ser hoje.
A casa avistava-se já onde vinha e uns arrepios assomaram-se-lhe no corpo pela espinha adentro, a figura mudara-se-lhe, o corpo tornara-se tenso, o coração batia forte, o sangue corria-lhe o corpo em tom apressado, o cérebro parecia estar a rebentar-lhe e parecera estar a ter o pesadelo dessa noute, e tudo isto se passara quando já estava a entrar na casa da senhora Joaquina, casa cujas paredes continuavam negras do fumo, cujo ambiente o deixava inquieto. Entre, entre, senhor Ferrara, sente-se à lareira, que está sol mas está frio, e não respondera Ferrara, perscrutou-lhe a cara, olhou em torno da cozinha, o tempo e espaço deixaram de existir, a senhora Joaquina estava prostrada no chão, olhos abertos direccionados ao tecto, saíra, olhou o sol, brilhava como sempre brilha, e dirigiu-se à tasca do senhor Gonçalves.

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