Nina



Como em célebres histórias difíceis de acreditar mas não impossíveis de acontecer – sucedendo mais vezes do que possa parecer –, dera à vida numa alcofa, muito bem aconchegada como um gato enrolado sobre si mesmo, à porta de casa dos Martins. Júlio e Vitória Martins. Há muito casados, são um casal abastado mercê de heranças de ambos e bem-visto pelas pessoas da vila, consideradas pessoas de bem, como sempre o são as pessoas abastadas. Quando Nina se lhes deu à vida nessa manhã, Vitória vira no aparecimento da pequena um milagre, pois o seu útero era falho de perfeição e não lhe permitia procriar. Como sucede as mais das vezes com milagres, Vitória agradecera a deus por este lhe ter dado a possibilidade de ser mãe, corrigindo deste modo o defeito com que a prendara. Júlio, por outro lado, mais racional nestas coisas de milagres e crenças atribuiu o aparecimento da pequena a uma coincidência e às vezes, quando matutava no assunto com mais força, ao facto particular de eles serem abastados e pessoas de bem e, por conseguinte, a mulher que deixara a criança procedera com o intuito de dar um futuro à filha que ela lhe não poderia dar. Supondo que se tratara de mulher e não um homem, ainda que o hábito remeta as mais das vezes para a mulher. E supondo ainda que se tratara de deixar à pequena um futuro melhor do que poderia ter, se criada com as pessoas que a procriaram. De tudo isto não se sabe o que acontecera, os motivos e quem foi, sabendo-se apenas quando fora. E é quanto basta a Vitória, e em algumas ocasiões a Júlio.
Não o é todavia para Nina. Desde criança que sabe que não é filha dos pais. Estes não lho esconderam quando ela os ouviu falar sobre o assunto e de seguida os indagara. Fora-lhe contada toda a história, tendo a história pouco para contar. Apareceste-nos aqui na porta da frente numa alcofa e estavas muito bem embrulhada, como um presente de deus, parecias um gatinho enrolado sobre si mesmo, não choraste quando pegámos no cesto e te trouxemos para dentro para o calor da lareira; não choraste quando te desembrulhámos dos cobertores que te acolhiam no quentinho e não choraste quando pegámos em ti nos braços e nos miraste com olhinhos de admiração, talvez de alívio, não sabemos. Eu e o teu pai não faláramos uma palavra tal era o nosso espanto. Desde aquele dia que te fizéramos nossa filha. Nunca soubemos quem foi que te deixara, quem era teus pais. Percorremos toda a vila, e as das redondezas, em busca de saber quem eram eles e por que te deixaram aqui, logo aqui na nossa casa, bendito seja deus, mas nunca obtivéramos resposta. Não houve nem há alma nestas vilas que saiba de onde nos apareceste. Desde então oficializámos a tua filiação. Éramos teus pais e assim o seremos até morrermos. Isto ouvira Nina e até hoje esta é a versão com que cresceu.
Mas Nina tem agora dezoito anos, e sem embargo da história que os pais com emoção contaram, sobreviera-lhe a necessidade de buscar ela as respostas que os pais nunca obtiveram. Foi pois com determinação que se abeirara dos pais, estavam estes no lareira em conversa silenciosa, e lhes disse meus queridos pais, estou muito grata por tudo que vós fizestes por mim, desde o conforto à educação, ao carinho permanente e amor incondicional como se fosse vossa filha consanguínea, mas és nossa filha, interrompeu a mãe, porém Nina continuou sou vossa filha, tendes razão, mas o não sou de sangue, e a mãe ia interromper novamente mas a filha prosseguiu no discurso expondo as razões por que iria partir em busca de respostas para as dúvidas que lhe assolavam de noite e que a não sossegavam. Sairia daí a três dias e ir-se-ia instalar na vila próxima a fim de investigar tudo quanto pudesse sobre a sua ascendência. Não adiantaria demovê-la pois estava determinada e não haveria quem a demovesse, inclusivamente o amor dos pais, que tanto amo neste mundo, disse Nina. Vitória começara a chorar; Júlio contivera-se. Ambos, porém, entenderam. Deram o seu consentimento, supondo que necessário fosse, e Nina partiria três dias depois.
A vila próxima tinha pouco mais de cinquenta habitantes. Fazer o périplo não levaria uma semana. Efetuaria as perguntas que fossem necessárias e as que não fossem necessárias mas achasse úteis e as que nunca foram efetuadas. Nina instalara-se na única pensão da vila. Ali ficaria por uma semana, a correr como desejara.

***


Antes muito tempo da partida, Nina excluíra ir ao registo e notariado, uma vez que não sabia o nome dos seus pais verdadeiros. Logo, consultar um genealogista pouco lhe adiantaria, também. Assim, Nina decidiu-se por procurar nas vilas próximas, na cidade e cidades limítrofes, e se necessário fosse ainda, sair de próprio país. Com efeito, Nina procedeu as suas buscas parentescas pela vila vizinha, após o que, resultando infrutíferas, seguir-se-iam as seguintes e depois as cidades e depois o país e os países vizinhos e o mundo inteiro até ao dia em que encontrasse os seus pais.
Metera-se no comboio que fazia a ligação à vila e seguiu na empreitada. Pretendia começar a sua investigação pela casa da senhora Aldevina, visto que, em tempos, quando se cochichava na escola não ser filha dos pais, ouvira que Aldevina havia comentado com os pais de Augusto que ela porventura fosse filha da Maria Lurdes, em tempos longínquos habitante da vila vizinha. Sabia, portanto, que a possível mãe já não morava na vila limítrofe, mas pelo menos saberia por Aldevina onde ela teria ido viver. Chegara à vila já noite, pelo que só no dia seguinte iria a casa de Aldevina.
A pensão onde dormiria situava-se defronte ao edifício da junta de freguesia da vila, um edifício imponente cuja história remontava há já duzentos anos, e a poucos metros de casa de Aldevina, a quem Nina iria bater à porta logo pela manhã e a quem extrairia o máximo que pudesse saber sobre os seus pais.
Logo pela manhã cedo, Nina sai da pensão rumo a casa de Aldevina. Bate-lhe à porta, esta já a espera, cumprimentam-se e a velha senhora diz para Nina entrar. Senta-te, senta-te, minha filha, diz a velha. Nina senta-se, e sente o cheiro a bafio da casa. A solicitude da velha pergunta a Nina se quer alguma coisa para beber ou comer, a timidez da pequena diz que não, pois já saí comida e bebida da pensão, muito obrigada. Muito bem, diz a velha, então que queres tu saber afinal, embora soubesse a que vinha a pequena – eram palavras de preâmbulo, apenas. Nina explica por que vem e o que quer saber, pois ouvira dizer que a velha sabia que ela possivelmente seria filha de Maria Lurdes. Então a velha Aldevina inicia a expor o que sabe à pequena.
Quanto tu apareceste na casa dos Martins, como saberás, começaram imediatamente os rumores. Na tua vila não havia ninguém que tivesse de barriga, pelo que ficava excluída. Ora, aqui, tanto quanto sabíamos, também não. De maneira que, da nossa vila não podias ter tu vindo. Foi então que soubéramos que na vila aqui ao lado havia uma jovem rapariga que, segundo alguns viram, estava de barriga e podia muito ter sido a tua mãe. Mas quando os teus pais por aqui andaram a saber quem eram os teus pais, encontraram-se com essa jovem rapariga, a qual lhes mostrara a criança que acabara de ter há uma semana. Os teus pais excluíram então que poderia ser ela a tua mãe. Mas nunca ninguém se perguntou se a jovem pequena não teria tido dois, pelo que tu serias a outra. Até hoje ninguém se preocupou por saber e perguntar disso. Passaram-se estes anos e tanto quanto sei e os meus velhos olhos conseguem ver, a criança já está grande, é uma mulher jovem como tu e não tem parecenças nenhumas contigo, pelo que da minha parte eu te digo que não és irmã, e logo não és filha dessa jovem, hoje mulher grande. Depois de muito se pensar, refletir, especular mesmo, abandonou-se a reflexão e a especulação. Anos passaram-se até que um dia estava eu na mercearia do Fonseca e vi surgir uma mulher, a Maria Lurdes, e sobreveio-se-me como que saída dos confins mais inóspitos da memória a lembrança de ter visto aquela mulher, jovem pequena na altura, andar de esperanças. Até hoje nunca soube por que ninguém se lembrara dela. Não era daqui, a pequena. Falei com ela nesse dia e como quem não perde nada em perguntar e muito menos em arriscar quando nada se tem, perguntei-lhe se a pequena estava boa de saúde, se estava crescida e se já andava na escola. A cara dela, minha filha, enrubesceu de tal forma que eu pensei seria o reflexo da maça vermelha que o Fonseca vendia ali mesmo. Respondera-me ela que não, que não estava boa de saúde, que não estava crescida e que não andava na escola. Não estava boa de saúde porque estivera doente, não estava crescida porque nunca o chegara a crescer e não andara na escola porque nunca chegara a lá chegar. A pequena, minha filha, tinha morrido de tuberculose quando tinha dois anos. Se a vergonha tivesse vergonha teria ali dado mostras mesmo a toda a gente que entrava. Depressa me despedi e fui-me para casa para de lá não sair durante um mês. Mas estava eu nesta enclausura de vergonha quando novamente a minha cabeça deu à luz uma outra ideia, a qual não era senão a mesma que me ocorrera anos antes sobre a outra jovem, que era a de que a jovem pequena pudesse ter tido uma irmã, que a mulher Maria Lurdes pudesse, por acaso ou por obra de deus nosso senhor, ter tido gémeos, sendo tu irmã da pequena que morrera sem ter crescido e ido à escola. Pusera-me a caminho da vila a fim de tirar as dúvidas que me atormentavam. Perguntei em toda a vila, em primeiro lugar, se a Maria Lurdes havia tido filhos, com vista a saber se era verdadeiro o que me contara, e asseveraram-me que era verdade sim senhor, que tivera e que infelizmente falecera. De seguida perguntei se era possível que tivesse tido gémeos, mas nada me souberam dizer. Andava eu nestas lides de polícia detetive quando dou de caras com Maria Lurdes. Reconhecera-me ela e sorrira-me e ia-se já embora quando a amarro pelo braço e, qual polícia que aponta a arma ao bandido, perguntei-lhe se ela não teria tido gémeos. Não sei se era da sua natureza se das perguntas, mas não é que ela enrubesceu novamente e me disse no entanto que não, não tive gémeos, infelizmente. E assim como o disse, se foi. Até hoje, pequena, tenho esta ideia na minha cabeça de que tu és filha dela. Já não mora na vila vizinha, segundo ouvi dizer, mas na vizinha da vizinha. Passa lá, sim, e pergunta-lhe, que uma mãe nunca esquece uma filha.
Nina ouvira tudo isto com atenção, mesmo quando observava algumas baratas subindo as paredes, ou mesmo quando uma aranha do tamanho da ponta de um dedo lhe passou por cima da mão. Nunca se desviara do que a trouxera ali. E sabendo pois que o passo seguinte seria ir à vizinha da vizinha, eis o que devo fazer, dissera-se.


***



A vila vizinha da vizinha era uma pequena vila ainda mais pequena que a vila vizinha e que a vila, donde que todos se conheciam muitíssimo bem e melhor ainda conheciam os seus segredos, o que, bem vistas as coisas, não eram segredos. Nada tinha de diferente das vilas vizinhas senão a sua dimensão.
Nina aterrara na vila vizinha da vizinha sem ir de avião, mas de comboio, uma vez mais. Desta vez, porém, não tinha onde ficar, mas esperava, dada a pequenez da vila, ficar apenas um dia, uma vez que unicamente iria saber de Maria Lurdes, suposta mãe sua. Como em todas as vilas, não há melhor que perguntar nos cafés, nos barbeiros e barbeiras, que as há nesta vila, nas mercearias, enfim, onde a língua faz parte da família. E fora, por conseguinte, aonde Nina se dirigiu. Porém, atalhando, saiu de todas elas sem saber o que fosse sobre a sua suposta mãe, ou sem saber uma pista que fosse sobre a sua ascendência.
Desanimada, Nina, ia já quando dá de caras com um senhor vetusto de bengala, um velho simpático cuja cara parecia a de um velho feiticeiro, qual Gandalf, que se atém ante ela e lhe pergunta se vem à procura de sua mãe. Nina acena com a cabeça tristonha, o vetusto de bengala faz um gesto para que o siga. Nina acompanha-o. Vão rumo a casa do velho onde este lhe dirá que Maria Lurdes já se não encontra na vila, mas mesmo que se encontrasse de pouco importava, uma vez que não é sua mãe. Nina ficará mais triste do que já se achava. O velho oferecer-lhe-á uma chávena de chá, ela aceitará de bom grado. Ambos se sentarão à lareira e conversarão noite adentro.
O velho Gandalf contará o que sabe e acrescentará o que julga saber.
Desde pequeno que sou dado a curiosidades, e uma vez sabido do teu caso, já lá vão dezoito anos, não parei de pensar nele nem de investigar o que pudesse saber a respeito da tua história. Soube há dias que te dirigias para aqui, por isso te encontrei ali. Também eu já perguntei em todos os lados que perguntaste. Também eu pensei que eras filha da Maria Lurdes. Mas não és. Ela mesma mo disse e nada me indica que não devo acreditar nela. Percorri todas as vilas vizinhas e vizinhas das vizinhas, inclusivamente saí do país e fui ao nosso vizinho, depois ao vizinho do vizinho, e para além desses todos. Quase diria, posso dizer-to, que percorri o mundo em busca de respostas para o teu nascimento. Eis que nada descobri. Não há registo escrito ou oral do teu nascimento. Não há pai ou mãe que tenha conhecimento do teu nascimento. Não há pai ou mãe que tenham conhecimento de te haver concebido. Não há pai ou mãe que te reconhecem como filha ou te reconheçam os olhos. Não hã mãe ou pai que tenham conhecimento de te haverem deixado na alcofa em frente à porta dos Martins. Não há mãe ou pai que alguma vez te tenham visto no colo deles ou de outrem. Não há pai ou mãe neste mundo que possam ser teus pais e tu filha deles, naturalmente. Eis a verdade tão nua e tão crua como uma mulher sem roupa e uma maçã tão verde. És uma Eva, Nina. És uma Eva, Nina.

Nina saiu de casa do velho rumo não se sabe onde, tão confusa estava de se saber uma Eva nua e uma maçã crua. Não voltou para trás a fim de fazer o caminho que fizera e a levara ali. Partiu para o mundo e o mundo partiu dela. 
Etiquetas:
edit

Mila





        Sob um edifício vetusto, porém habitado, cinzento e com largos metros de comprimento, paralelo a outro em todo semelhante, situava-se um dos estabelecimentos mais antigas da cidade em cujo interior se reuniam os mais diversos grupos mafiosos e terroristas da cidade, entre outros pequenos criminosos. Dir-se-ia que era uma mixórdia de criminosos. O estabelecimento existia já desde o século passado, sobrevivendo a todas as crises por que passara o país e a todas as crises por que passara a economia do crime. Propriedade de família italiana, a meio do século passou para uma família irlandesa, sendo hoje propriedade de uma família russa. Tinha o peculiar nome de Mila, que em russo significa amor do povo. O nome, porém, era também o mesmo que lhe dera origem, que em italiano significa trabalhadora e ativa – segundo julgamos saber, embora sem nenhuma propriedade. Pelo meio os irlandeses deram-lhe o nome de Hennessy’s. Quando os russos se apoderaram do estabelecimento aos irlandeses tomaram a iniciativa de saber a sua história ficando pois a saber que se chamava Mila quando pertença dos italianos e tendo sido esse o seu primeiro nome. E como Mila também era nome russo, decidiram que assim se chamaria. Democraticamente, Mila seria o nome incontestado.
Desde há vinte anos que Mila tem um cliente frequente, além do cliente habitual e o qual lhe dá a sua sobrevivência, falamos pois do criminoso. O cliente frequente é um velho citadino que passa os seus dias em Mila bebendo e fumando, lendo e conversando. O seu cliente habitual é cliente desde sempre: o criminoso que passa para buscar as encomendas, para receber o dinheiro, para combinar os crimes, para conspirar contra o governo, para saber quem matou quem e quem encomendou o quê, e tudo afim ao crime. O cliente frequente é um velho homem de cara enrugada, barbas grisalhas, nariz grande que lhe confere um ar sério, de bom trato, falador, mais ainda com os copos, com uma cabeça que mais parece uma abóbora, quer dizer, grande em demasia, fazendo jus à sua estatura, pois de quase dois metros. Certo dia ao passar perto de Mila, esfomeado por não comer há já um dia, decidira-se a entrar, e desde então passara a ser cliente frequente. É igualmente benquisto por todos os habituais clientes de Mila.
Em Mila, todos, podemos dizer, se conhecem, mas nem todos se gostam. Não raro há umas zaragatas, comuns a estes estabelecimentos, que facilmente se resolvem. Outras, porém, são de mais difícil resolução. Seja por exemplo, a relação que o grupo constituído por irlandeses tem com os italianos. Aqueles surripiaram Mila a estes, e sem embargo de no seio do grupo já não permanecer um elemento que seja desses tempos, a relação mantém-se inalterada. Outra má relação, esta embora de índole histórica, é a que os japoneses têm com os chineses. Não se dão por nada deste mundo, nem do deles. Há ainda as dos turcos com os gregos, também histórica. Como se vê, quando estes grupos se misturam em Mila, há por certo confusão da grossa. Porém existe um pacto, entre todos, segundo o qual em tratando-se de negócios não deve de modo algum haver confusões, pois, de acordo com o bom senso economês, não fazem bem aos negócios. Há contudo algo que une alguns destes grupos e com o qual nunca discordam, a saber, o ódio comum ao inimigo. Pois assim quando se trata de conspirar contra o inimigo, até os maiores inimigos são os maiores amigos. Verdade consabida.
O velho cliente frequente ri-se a bom rir com estas zaragatas. Observa-as desde o dia em que aqui vem. Conta ele agora a Alek, o velho russo que aqui toma a sua vodka sem faltar um dia do ano, ontem os romenos entraram por aí adentro a fim de debater-se com o Li, o chinês que no outro dia roubara Anca, a filha do Cristian, que como sabes é o líder dos romenos, mas deram-se mal; qual Bruce Lee, o Li desancou em todos com pontapés para aqui, punhos para acolá, eram uns a cair, outros a levantar-se doridos, e todos a sair em menos de minutos; te digo, Alek, até a mim me doeu. O velho russo ria-se como um bêbedo, sem o estar. Alek era conhecido dos donos de Mila desde que estes se apropriaram do estabelecimento em meados de cinquenta, mas só cliente há dez. Era um fulano circunspecto, de cara rosada, cabelos quase brancos, alto e corpulento, olhos grandes e azuis, e com uma conduta dir-se-ia irrepreensível. Não obstante a sua prudência em relação aos outros, dera-se desde logo muito bem com o velho cliente frequente. Portanto, desde há dez anos que vem mantendo uma boa relação com o velho. A qualidade rara de observância deste é para Alek uma mais-valia. Na realidade, o velho cliente frequente é de uma escrupulosidade e minuciosidade com relação aos pormenores, que Alek inveja positivamente. O velho cliente frequente é capaz inclusivamente de descrever ao pormenor o pequeno lixo que o turco traz nos sapatos, ou o fio do cabelo pendente no casaco do japonês, ou seja por exemplo aqueloutra vez em que velho cliente frequente descreveu pormenorizadamente o plano que os turcos tinham de colocar uma bomba na casa dos japoneses.
Contava-se assim: os japoneses, por intermédio e com ajuda dos gregos, estavam a avançar no crime da droga e a vir a ocupar as ruas que estavam a cargo dos turcos. Os gregos haviam concedido as suas ruas e bem assim fornecido aos japoneses com vista a que estes se apoderassem das ruas e do negócio dos turcos. Os turcos através dos italianos vieram a saber que os japoneses estavam bem fornecidos e que estavam a vender o produto a metade do que eles vendiam. Isto só poderiam ser más notícias, disse o velho cliente habitual, pois aos turcos restava-lhes, no meio do crime, apenas o negócio da droga. Sem ele, não saberiam mais o que fazer. Já nem os negócios dos kebabs lhes valia. Não havia outro meio que não eliminar os japoneses. Aqui, naquela mesa, estavam os quatro turcos chefes a preparar o plano. Consistia em meter quatro prostitutas no prédio dos japoneses, levando uma delas uma bomba, pois, diziam, eles fraquejavam ante as mulheres. Duas chegariam em primeiro a fim de os embebedar; a terceira entrava a meio para os distrair; e a quarta entraria à socapa, instalaria a bomba, juntar-se-ia às outras três durante uma hora, após o que desceriam e assinalariam que estava tudo conforme. Restava pois aos turcos ativar a bomba, e pum, iam todos pelos ares. Mas Alek, quem foi pelos ares foram os turcos, como bem sabes, é que no meio disto tudo estavam os turcos com a guarda abaixada e os gregos aproveitaram-se e meteram eles uma bomba no prédio dos turcos, e pum, foram os turcos rezar a meca através do fumo emanado pela explosão. No mundo do crime, todavia, ninguém fica a rir-se, e não tardou que os gregos fossem presos pela polícia quatro dias depois. De pouco valeu o pacto. Quanto aos japoneses, receberam dos gregos o avisamento sobre a bomba. Safaram-se.
O velho cliente frequente é apreciado por todos os que frequentam Mila. Sejam eles chineses, romenos, turcos (estes reduzidos a meros três criminosos que agora tentam reconstituir, angariando mais elementos, o grupo), japoneses, gregos, russos, italianos ou irlandeses, ou mesmo aqueles que não pertencendo a nenhum grupo mafioso frequentam Mila. Mercê de um bom senso incomum e de uma sensibilidade distinta, o velho que é cliente e outrossim frequente fala com todos e todos falam com ele, ouve os que pode e os que querem ser ouvidos. Não muitas vezes foi visto a resolver contendas, das pequenas, claro está, entre os grupos. É o juiz em Mila.
Dele nada se sabe, pelo menos em Mila. Donde é, se é casado e tem filhos, que idade tem, do que vive. O que se sabe é que aqui vem todos dias e todos os dias faz as mesmas despesas (exceção feita quando a ultrapassa). Que lê os jornais, que lê os livros que traz, que escreve num bloco de notas, que por vezes simplesmente fica a observar os criminosos e as gentes, que conversa com as pessoas, as gentes e os criminosos, que muito fala com Alek, o russo, que gosta de comida russa, bebidas russas, mas não é russo, que a nacionalidade também não lha sabem. É um mistério, mas apenas para quem aqui não vem, porquanto os que aqui vêm não querem saber dele para nada, por muito boa pessoa que o velho cliente e frequente seja.
Sabemos nós, porém, que o velho não é muito velho, que é casado e tem dois filhos, uma filha já crescida e um filho em vias de crescer, uma mulher devota desde há largos anos, que vive a dois quarteirões de Mila, e que tem um rendimento não se sabe bem do quê, porque isso a nós não nos chegou. Portanto, o velho que frequente Mila não é um parasita que alguém se lembrou de descrever, e também não é um zé-ninguém que passa os seus dias num estabelecimento onde se servem comida e bebidas e onde param criminosos para planear os seus crimes, ora pequenos (as drogas, a prostituição, os roubos), ora grandes (terrorismo).
Por falarmos em terrorismo, apercebeu-se o velho um dia destes que um novo grupo se instalara em Mila já vai um mês. Não são ocidentes, nem orientais do tipo japoneses e chineses. Mas também não são médio-orientais, do tipo iranianos, afegãos. Na verdade, este grupo não é homogéneo mas também não é heterógeno. Não é homogéneo porque nenhum indivíduo do grupo se assemelha aos restantes e tão-pouco há características a partir das quais os possamos identificar. Por outro lado, também não é heterógeno porque nada nestes indivíduos parece ser dissemelhante. Não há traço neles que os aparentem, o que lhes conferia alguma homogeneidade, nem traços neles que o distinguem, o que lhes conferia alguma heterogeneidade. De outro modo, aos olhos dos demais estes indivíduos são como que estranhos seres que apareceram sabe-se lá donde, não se aparentando com ninguém que alguma vez haja sido visto em toda a história da humanidade. Por exemplo, as mulheres não se distinguem dos homens e vice-versa. Os velhos não se distinguem dos novos. A cor é sempre a mesma. Não há pretos nem brancos nem amarelos nem vermelhos, muito menos verdes, para aqueles que agora pensam na possibilidade de serem extraterrestres. Os cabelos da mesma cor, ou melhor, incolor. A cor dos olhos igualmente incolor. As mãos, tendo cinco dedos cada uma delas, não se parecem com as de um ser humano dito normal, nem dito anormal, muito menos com as de uma aberração qualquer que a história tenha deixado nos relatos. A cabeça, porém, é a do tamanho médio de um ser humano. A boca sendo semelhante a nós humanos é porém distinta nos lábios, mas não sabemos bem em quê, apenas que o é. No mais, é igualmente desigual a qualquer um de nós humanos. Aquilo que, contudo, não se pode ver com os olhos, não sabemos nós como é nem parece que alguma vez nos venha a interessar. Quando à língua, falam a mesma que a nossa. No atinente a gastos em Mila, estes novos clientes apenas gastam dinheiro em duas coisas: água e comida, sendo a comida sempre a mesma, uma mixórdia russa, que, pelos vistos, lhes deve agradar ao palato. Não sabemos se alguma vez provaram ou provarão outra.
Para os chineses, eles não são seres humanos – não sabemos as razões por que foram os chineses os primeiros a refletir sobre estes seres –, mas não são extraterrestres, pois a imaginação chinesa ainda tem os seus limites. Para os russos, eles são uma espécie de seres ambiguamente inumanos, no sentido antigo do termo, muito embora nos parece que os russos não fossem capazes de pensar tal coisa. Para os gregos, mais dado a reflexões, não são nada, pois todos na choça e não contactaram com eles, sequer. Para os italianos, não são nada. Sequer se deram conta destes seres – por alguma razão Mila lhes fora roubada. Enfim, para nós que os observamos de fora, eles com efeito não se parecem com nada que alguma vez tenhamos visto. São como que um desenho pintado com lápis branco numa página igualmente branca.
Reparara o velho cliente frequente em todos estes pormenores há já um mês e ainda não concluiria nada. Sem embargo de tudo que acima fora dito e que o velho reparara e talvez até tirara notas, o comportamento é em tudo semelhante ao nosso. O nosso velho ainda não falara com ninguém no tocante a estes novos elementos em Mila, e sabe-se igualmente que os restantes clientes habituais também não, senão entre eles mesmos. Está o nosso velho na sua frequente mesa a ler o frequente jornal e bebendo a frequente vodka, hábito que ganhara por causa de Alek, a pensar nestes estranhos seres e no que serão e no que quererão e por que aqui vieram dar, logo aqui a Mila, e ouve um deles muito baixinho dizer que a melhor hora será às dezanove horas porque, não ouviu o resto o velho, o presidente lá estará, ouviu agora, e quanto mais pessoas estiveram melhor para nós, ouviu novamente. Velho astuto, percebeu que se trata de uma combinação em ordem a uma tentativa de assassínio do presidente. É sabido que o presidente vai estar numa inauguração amanhã às dezanove no museu das Coisas Velhas, que é o que os museus são na verdade, enfim, anunciara-se hoje em todos os programas de informação. Logo, conclui o velho astuto, estes seres estranhos vão tentar matar o nosso presidente amanhã pelas dezanove horas. É preciso fazer alguma coisa imediatamente, pensou.
Pensara telefonar para a polícia, mas indo já em direção a casa cogitou que o melhor seria ir ele próprio à polícia. E eis então que se encontra agora na polícia. O polícia que o atende pergunta-lhe que pretende, ele responde que o presidente corre perigo. Procedimento habitual nestas coisas de atentados, pegam no velho e levam-no para uma sala a fim de saberem todos os pormenores, mais parece um interrogatório, e o velho conta tudo o que ouviu. Sabemos pois que o que conta é muito pouco, pois pouco foi o que os seus ouvidos puderam ouvir. E sabemos igualmente que o que conta sobre os estranhos seres não é crível para os polícias, porquanto quem de bom senso iria acreditar que seres como os retratados pelo velho existem?!. Coisas que não se parecem com nada, afiançam uns aos outros. Deste modo sai o velho da delegacia em direção a casa com a certeza que a polícia nada fará para salvar o nosso presidente. Decide então telefonar a Alek e pô-lo ao corrente do que possivelmente vai suceder. Explica igualmente o que a polícia não fez e não vai fazer. Alek ouve-o atentamente, e enlevado por toda esta trama, qual KGB, manifesta a vontade, em última instância, de contactar todos os clientes habituais de Mila, quer dizer, os criminosos, a fim de contar com a ajuda deles e do seu arsenal com vista a ajudar a proteger o nosso presidente. O velho cliente frequente anui, pois, claro é uma boa ideia.
São dezoito horas e os velhos, o nosso velho e o velho Alek, e alguns criminosos, os que acharam por bem uma vez na vida contribuir com algo de bom para o país, estão em frente ao museu de Coisas Velhas. A segurança não foi reforçada, como já se esperava, pensa o velho cliente. Com os telemóveis sob a gabardina que vestem e uns auriculares vão contatando uns com os outros. Um dos criminosos, que tem contatos com os vereadores da câmara, arranjou forma de pôr todos dentro do museu. Por ora ainda estão fora. Não tarda estarão lá dentro, a fim de proteger o presidente daqueles seres que não sabemos quem são, acaba de pensar o velho.
Quando o velho saíra no dia anterior da polícia, estes levaram a sério o aviso de que o presidente corria risco de vida. Só que, em vez de pensarem que fosse em razão de uns seres incolormente estranhos, acharam que o presidente sim corre risco de vida devido a esse velho que está paranoico, foi o que disse o subcomissário da polícia, não explicando por que achava o velho um risco e paranoico. A polícia tem destas coisas, quando se pensa ter visto de tudo, alguma coisa surpreende-nos. Eis o pensamento deste subcomissário. Na realidade, o subcomissário pensou o seguinte: um velho vem cá contar que uns seres estranhos, incolores, que se parecem e não parecem uns com os outros, como que por mágica ou um efeito estranho aos nossos olhos, vão atacar o presidente às dezanove horas e a segurança não dará por isso, mas na verdade quem atacará o presidente é esse velho maluco, porquanto ele quer é distrair-nos, e ter vindo aqui contar é uma forma de desviar as atenções. Pois assim amanhã teremos de estar de olho neste velho e quem com ele venha, estão a perceber, disse o subcomissário após o velho ter saído da delegacia. No dia seguinte armou toda a delegacia a fim de ir toda, literalmente toda, para a segurança e vigia ao presidente. Assim, no dia do atentado ao presidente a polícia inteira da cidade estava de vigia. O velho porém não reparou em nada. O que é normal, porque estavam todos à paisana, com exceção do habitual destacamento de segurança.
O carro do presidente aproxima-se, diz o velho para o velho Alek e os criminosos. O carro do presidente aproxima-se, diz o subcomissário para os seus agentes. O presidente está a sair do carro, estejam atentos, diz o velho para o velho Alek e os criminosos. O presidente está a sair do carro, estejam atentos, diz o subcomissário para os seus agentes. O presidente está a entrar no museu, diz o velho para o velho Alek e os criminosos. O presidente está a entrar no museu, diz o subcomissário para os seus agentes. O melhor é entrarmos, diz o velho para o velho Alek e os criminosos. O melhor é entrarmos, diz o subcomissário para os seus agentes, avisando todavia os que já lá estavam dentro. Vamos pela frente, diz o velho para o velho Alek e os criminosos, como combinámos. Vamos por trás, diz o subcomissário para os seus agentes, como combinámos. O presidente entrará dentro de cinco minutos, estejam atentos, disse o velho para o velho Alek e os criminosos. O presidente entrará dentro de cinco minutos, estejam atentos, disse o subcomissário para os seus agentes. O presidente entra agora mesmo, é agora, diz o velho para o velho Alek e os criminosos. O presidente entra agora mesmo, é agora, diz o subcomissário para os seus agentes.
O que se passou a seguir foi assim contado pelos noticiários, os quais não temos razões de duvidar. Quando o presidente estava prestes a falar, a polícia adentra pelo museu, uns polícias vindos do lado direito, outros do esquerdo, outros da frente e outros de trás, de arma em punho, afastando tudo e todos, e no meio deste círculo policial estavam dois senhores com idade que gritavam umas palavras incompreensíveis, supõe-se que assustados com o que se estava a passar, e os quais no meio da confusão foram baleados, em primeiro lugar, e em segundo o nosso presidente. Ao que o nosso jornal apurou, o tiro que alvejou o presidente foi de uns criminosos que se encontravam no museu à mesma hora, alegadamente entraram por intermédio de um dos vereadores, que, tanto quanto apurámos, se dava com os criminosos e mantinha uma relação de há uns bons anos com eles.
Foi assim que a notícia passou na televisão em Mila. Os que restavam, olhavam o ecrã incrédulos com o que e com quem se tinha passado. Os seres que não se pareciam com nada nem com eles mesmos já não iam a Mila há dois dias.



Etiquetas:
edit