Firmino





Num caso ou no outro, o desfecho era o mesmo. Fora por isso que não tomei decisão alguma (que fosse). O que tivesse de ser, seria.
Eram quatro depois das quatro quando cheguei finalmente à vila. Quase deserta. O sol batia forte. Por isso calor. Abrasador. A sede aparecera-me havia algumas horas, após haver andado trinta quilómetros, estou em crer. De modo que, sem esperar um minuto que fosse, desloquei-me à tasca donde saíam os únicos ruídos daquela vila silenciosa.
À entrada, um cachorro pequeno, pelo preto, olhos grandes a fitar-me; a seu lado, o que supunha ser seu dono, um fulano de bigode raro, cabelo oleoso, grande e vasto, de cara magra, cujos olhos mostravam o inferno em pessoa; à minha frente, o empregado da tasca rindo para a mulher que acabara de lhe pedir uma fresquinha (piscando olho e passando-lhe as mãos pelas mãos); numa mesa do meu lado direito, três homens, dois jogando damas, e o outro arbitrando; do meu lado esquerdo, um homem, uma mulher, outra mulher, outro homem, e mais duas mulheres. Ou seja, quatro mulheres e dois homens, se ainda consigo somar.
Um copo de água, se faz favor, pedira eu ao empregado. Fez cara torta, mas lá ma deu. Bebi sofregamente. Outro por favor. E outro, se não se importar. Todos me olharam (não os vi, mas pressenti). Sentei-me numa das mesas desocupadas. Foi então que um dos homens que estavam com as mulheres me dissera: “amigo, vejo que está com sede. Mas nada melhor que um copinho de vinho para lha matar.” Confesso que só ouvi matar. E por havê-lo ouvido, sem reflectir que fosse sobre o que se me dissera, atirei, com uma rapidez que julgara não ter, o copo de água mesmo na fronha do homem que pouco antes me dissera “matar”. Vidros no chão. Todos a levantarem-se. O empregado a berrar homem mas que é isso, saia já daqui. As mulheres em roda aparando o jorro de sangue que lhe saía da cara. O cachorro a ladrar. O que se julgara dono a acalmá-lo. Os homens das damas a fitarem-me. E eu, nem em mim, a pensar em tudo aquilo.
Quando dei por mim, estava na rua.
O sino tocou as dezasseis e quinze. Não sabia bem para onde me dirigir. O lado direito vislumbrava-se-me como o melhor. Mas optei pelo esquerdo, contrariando a minha intuição.
Ontem, por voltas das vinte horas e trinta e seis minutos e quarenta segundos, iniciei a caminhada que me levou à tasca mencionada atrás. Saí da minha aldeia definido. Caminharia em direcção à vila mais próxima, esta que acima resolveu expulsar-me, e lá definiria a minha vida, ou o que dela esperaria ainda poder ter. Pegada a mochila, metidas dentro umas coisas que me seriam úteis e me fizessem falta, caminhei noite dentro sem olhar para trás (bem, na verdade olhei algumas vezes, mas isso agora não interessa).
Não vos esconderei. É verdade isso que ouvis. Matei o Jerónimo com uma facada no coração. Já não se matam homens com facadas no coração (diga-se para que se não esqueça o meu feito e feitio). Hoje matam-se homens com metralhadoras, pistolas, bombas, bem, essas cousas todas de guerras hodiernas. Mas eu não. Eu ainda sou antiquado no que tange a estas cousas de matanças. Foi mesmo de faca. A mesma que na noite anterior tinha descascado a cebola, cortado, ajudado na destona da maçã, sobremesa dos dias, etecetera.
Irei contar-vos porque me sois fieis.
Rezou assim.
Maria Helena sempre fora uma moça bonita e por isso desejada por todos os homens da aldeia. Quando ainda criança já todos queriam casar com ela. Filha de Paulo de Sousa Matos, que por sua vez era filho de João de Sousa Matos, doutor da cidade (doutor o avó, não o filho. Ou o pai, não o filho. Entenda-se.). Portanto, como vedes, moça de boas famílias. Educada pelo avô nas letras gregas e latins, mas a cujas línguas nunca se dedicou com afinco, começara a ajudar o avô nos seus negócios. Pelo que, não raro era vê-la passear-se pela cidade, ora fazendo recados para o avô, ora mesmo para tratar de algum negócio que aquele a incumbira.
A sua beleza fazia história, sabia-se, mesmo nas aldeias perto. Homens de algumas dessas aldeias vinham à nossa só para a ver. Alguns passavam dias inteiros sentados nos bancos dos jardins esperando vê-la – mas nem todos tiveram essa sorte, porquanto dias havia que ela não saía de casa. Esses em que não saía de casa eram passados a ajudar a mãe nas lides domésticas, pois sofria de doença grave (que não vem para o caso agora).
Maria Helena tem agora 19 anos. Idade para se casar. Muitos pretendentes foram pedir a mão a seu pai. A todos este recusara. Foi então que eu, na minha ousadia, mesmo sabendo de todas as recusas, dei por mim a tentar a minha sorte. Bati na porta de Paulo de Sousa Matos eram 19:30. Quem me apareceu pela frente fora, sem eu prevenir-me para o facto, o seu irmão Jerónimo de Sousa Matos. Fiquei sem saber o que fazer. Havia-me preparado para o seu pai, não para o irmão. Mas este falou, e eu deixei o pânico. O que me disse não fora diferente do que dissera a muitos outros, a saber, que estava a perder o meu tempo. Que o seu pai não me iria aceitar. E pior: que a irmã não  se queria casar comigo. Subiram-se-me os nervos pelo desplante; por não me deixar sequer entrar, por não deixar sequer falar com o seu pai, e dizer a Maria Helena que me queria casar com ela. Quando lhe dissera mau grado saber disso mas que gostaria mesmo assim de falar com o seu pai, Jerónimo saca de uma faca e lança-se a mim ferozmente. Afasto-me lesto, e ele cai no chão. A faca olha-me. Não me pergunteis pois eu não vos saberei responder: lembro-me apenas de sacar da minha, pois mais adequada (o sacana nem a faca soube escolher) e lha espetar no coração. Assim sem mais e sem mais remorsos. Uma vez. Duas. E três. Três facadas em pleno coração – para o bandido saber quanto me doeu o meu há pouco.

Assim vedes: foi tal qual. Fora isto que me levara a sair da aldeia e ir em direcção à vila. E eis-me aqui. Já escolhi o caminho, porém. Lado esquerdo. Mas escolhi mal. Pois agora mesmo ao virar da esquina dou de caras com os mandatários do pai de Maria Helena. Joaquim Vigário, Félix Sousa (primo), Mário Alberto de Sousa Matos (tio de Helena, irmão de Paulo, pai de Helena, como já vos disse), Cristóvão Malheiro e por fim Davide Ferreira. Um para cinco. Que poderia eu fazer? Pensei em todas as possibilidades. Nenhuma delas satisfatória. Quedei-me por ali. O que tivesse de ser, seria (e tinha muita força. Soía-se dizer.). 
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