Libório




Houvera quem se tivesse dado ao trabalho de me conceber. Benditos sejam! Houvera quem me pusesse o nome de Libório, mas às vezes chamam-me Lib. Houvera muitas coisas na minha vida. Benditas sejam! Algumas delas, contar-vo-las-ei. Outras morrerão comigo, como morre muita coisa connosco sem nos darmos conta disso.
Tenho vinte e três anos. Um terço da vida já lá vai. Não a recuperarei nunca. O que ficou para trás é impossível de recuperar. Ter consciência disto é morrer todos os dias.
Vivi bem, enquanto pude. Fiz esforços para a que minha vida fosse o mais suportável possível. Umas vezes consegui-o; outras não. Importa tentar, sói dizer-se. E tentei.
Quando somos crianças achamos que somos diferentes das demais. Achamo-nos especiais. Os pais quase nos fazem acreditar nisso. Os seus filhos são sempre especiais. E contudo eu o era. Nunca me disseram em que era eu especial. E eu nunca o descobri. Mas sei que fui especial.
Não era porque fora intelectualmente precoce: aos quatro já sabia ler e escrever. Não creio igualmente que fosse por criar empatia com as pessoas. Ou que fosse a compaixão que brotava de mim à medida que a consciência se ia formando que fizera de mim especial. Enfim, não sei mesmo o que fora. Só sei que o fora.
Quando tinha seis anos, tivera uns vizinhos muito pobres. Todos sabíamos que aquela família vivia com sobejas dificuldades. O Pedrito, que era o filho dos meus vizinhos, não raro me dizia, com o ranho a cair-lhe pelo nariz, que tinha fome. Lembra-me ainda hoje muito claramente quando mo dissera da primeira vez. Desatei a chorar e fui a correr para os braços da minha mãe, a fim de lhe dizer que ia levar a comida que sobrara do almoço ao Pedrito, pois estava com fome e tinha-mo dito. Não pronunciara uma palavra, dado que pensava que não falando dos problemas eles não existiam. Era o procedimento vulgar das pessoas vulgares. Fechar os olhos ao que nos rodeia para que o infortúnio dos outros nos não afete. O Pedrito comeu sofregamente o pouco que lhe levara. Era muito para quem tinha e comia muito pouco. Perguntava-lhe eu enquanto ele comia se estava a gostar, e ele olhava-me com a perna de frango na boca, sujo, acenava com a cabeça e continuava. Comia como um cão, o Pedrito! Perdoe-se-me a comparação. Mas comia mesmo como um cão. Aquele meu gesto era para mim mil refeições que eu pudesse ter durante a vida. A satisfação que obtivera ao ver o Pedrito comer era para mim impagável. Quando cheguei a casa nessa tarde, já princípio de noite, dissera a minha mãe que o Pedrito comeria, doravante, em nossa casa todos os dias até os pais lograrem um trabalho. Os meus pais não disseram uma palavra. E o Pedrito passou a comer lá em casa. Umas vezes também dormia.
Os pais de Pedrito não tinham qualquer problema com álcool e essas coisas a que habitualmente as pessoas associam à pobreza. A mãe, Josefina, fora despedida da fábrica onde trabalhava há já quinze anos. Como ela, outras mães. Ao pai, Gabriel, sucedera-lhe o mesmo, depois da empresa para a qual trabalhava ter entrado em insolvência. Estavam em falta com a renda de casa havia meses, a luz estava quase a ir-se, o gás já só havia a última botija, e sem a qual não se podia cozinhar e com a qual faziam apenas uma refeição por dia, contando sempre os minutos quando a usavam, e por causa disso não tomavam banho há semanas. Quando ia buscar o Pedrito para almoçar ou jantar, ou para brincarmos, entrava naquela casa e o cheiro penetrava em mim com uma força que me fazia perder a fome, quando se tratava de levar o Pedrito para comer.
O Pedrito começara a ser o irmão que eu não tivera. Protegia-o como se fora meu irmão. Brincávamos ao esconde-esconde, aos cowboys, jogávamos à bola, íamos à ameixoeira do senhor Manel roubar umas ameixas, outras vezes umas maças, e ríamo-nos como doidos! Ah, que saudade desses tempos!
Depois o Pedrito mudara-se, com os pais, para a casa dos avós, cuja ficava a oito quilómetros. De vez em quando pegava na bicicleta e ia visitá-lo, dado que ele não tinha uma. Quando me via, lá vinha a correr na minha direção e pedia para o levar nela. Colocava-se de lado e lá descíamos a toda a velocidade a que a bicicleta podia atingir. Depois pedia-me para andar nela. Pedia-me para lhe ensinar a fazer cavalinhos. Para lhe ensinar a fazer peões. Ah, o Pedrito!
Recordo-me como se fosse hoje, estava a fazer os deveres de casa quando a minha mãe entrou no quarto. Parecia ter os olhos molhados. E disse-me: “Libório, quero que venhas à sala, porque eu e o teu pai queremos falar contigo.” Como a escola me corria bem, pensei que me iam dar uma prenda, pois já há muito que lhes pedia a nova bola de futebol que ia ser a do próximo mundial. À minha ansiedade de ver a nova bola, sobreveio o baque, forte, lancinante, como uma faca afiada apunhalando cada pedaço do meu corpo, a notícia que o Pedrito tinha falecido. Corri porta fora a chorar, e os meus pais atrás de mim chamando-me. Corri tanto nesse dia!
Foi a partir desse dia que me decidi que queria ser bombeiro. E também nesse dia nasceu comigo a vontade de ser atleta. A primeira, porque queria salvar milhares de milhões de Pedritos. A segunda, porque queria correr infinitamente à procura do Pedrito.
Tinha então catorze anos quando me inscrevi nos bombeiros. Primeiro, fui cadete. Depois aspirante. E depois bombeiro de terceira classe.
À época, com quinze anos, já podíamos fazer o que então se chamava de serviço. Fora pois ainda muito novo que comecei a fazer serviços. Lembra-me ainda hoje o primeiro que fiz. O Tó foi o motorista. Uma senhora idosa, acamada, com dificuldades de respiração, necessitava da nossa ajuda. A filha havia telefonado para os bombeiros para que a fossem buscar. E eu e o Tó lá a conduzimos ao hospital. Durante os meses seguintes, a infeliz idosa passou a ser cliente habitual dos bombeiros e do hospital. Ainda a fui buscar umas três vezes. Depois, ou morreu, ou morreu, pois deixei de a ir buscar e de a ver no hospital.
A segunda vez fora uma transferência. Um fulano que havia tido um acidente de mota e partira o braço tinha de ser transferido para o hospital da cidade vizinha, uma vez que o hospital da nossa cidade não tinha o serviço de ortopedia. Foi um serviço simples, visto que o senhor andava e nem fora preciso a maca.
Depois houve uma terceira e uma quarta e por aí adiante.
Vi coisas tenebrosas. (Não fora só o Herberto que as viu.)
Estar perto da morte não me fez olhá-la de forma diferente. Vê-la tão-pouco. Em nenhuma morte vi o Pedrito. Procurei o Pedrito em todas as mortes que se me depararam na frente, mas em vão. Pensei que confraternizando com a morte pudesse fazer as pazes com ela e entendê-la como o comum das pessoas a entende, a saber, que faz parte da vida. Mas até hoje nunca a entendi. Perguntei-lhe diversas vezes porque levara o Pedrito, mas a puta nunca me respondeu. Em resposta, levava mais um que me passara nas mãos. E a cada um que me tirava das mãos, era mais um Pedrito que me deixava.
Seja por exemplo aquela senhora que caíra do trator enquanto lavrava o campo. Quando chegámos ainda estava viva. Quando arrancámos estava-se a ir. E quando chegámos ao hospital, foi-se mesmo de vez – talvez ter com o Pedrito. Com a maca nas nossas mãos, passámos em frente às pessoas que estavam nas urgências, ora esperando ser atendidas, ora esperando por familiares serem atendidos, e entrámos de rompante. Os médicos vieram logo em socorro. Ainda em cima da maca, fizeram os médicos todos os esforços para trazê-la da morte, usando o desfibrilador. Choque atrás de choque a mulher insistiu ficar na morte. Só ouvi a médica dizer para a enfermeira que eram tais e tais horas. Mais uma!
Quando comecei nas corridas conheci a Felisbela. Também corria. Passámos a treinar juntos. A Felisbela tinha um coração enorme, por isso me apaixonei por ela. Mas um dia parou-lhe.
Fazia eu o meu percurso habitual de treinos quando a vi passar por mim. Ia sozinha. Não era habitual ver uma mulher correr. Aliás, nunca tinha visto sequer. Nesse dia, não disse nada. No dia seguinte, tornei a vê-la, mas envergonhado nada disse. Andei uma semana para lhe falar e não lhe falei. Eis que quando me decido a falar, Felisbela se abeira de mim e me pergunta, com um sorriso na cara tão belo quanto os vedas, se pode fazer-me companhia. Anuí. Mais a mais porque treinava sozinho e companhia era sempre bem-vinda. E sendo Felisbela, melhor ainda. Dois meses depois estávamos a namorar.
A nossa primeira corrida juntos  tivera dez quilómetros. Era numa das cidades vizinhas. Eu fiquei em vigésimo quinto. Ela em décima nona. Nos respetivos géneros.
Num dos nossos treinos conjuntos, certo dia, combináramos fazer uma meia-maratona, mas em ritmo de competição. Acordáramos que treinaríamos para ela e que a segunda do calendário competitivo a correríamos. Até hoje Felisbela ainda a está a correr.
Desde esse dia, abandonei as corridas. Nunca encontrara o Pedrito (e corri, corri, corri para encontrá-lo), e perdera, ainda, Felisbela.

Como bombeiro que sou, e mau grado as mortes que vi, tive a felicidade de nunca ter visto colegas meus morrerem em incêndios, como quase todos os anos morrem colegas nossos. Nunca gostei muito de combater incêndios. É apavorante ver as labaredas amarelo-torrados defronte a nós. Mesmo com a agulheta na mão, elas intimidam-nos. O calor deixa-nos sem pensar. O melhor, e muitas vezes o pensei, é fugir. Fugir para longe dali. Mas nunca fugi. Sempre achei que era especial, e que a minha especialidade era defrontar a morte. Via-a vezes suficientes para não temê-la. Não a temo. Ela vem, chega devagar, a chama lenta inicia primeiro por amarrar-se às botas, depois vai subindo pelas calças, sinto o calor trespassar o meu corpo, o cheiro a queimado, a carne queimada, mas não a temo. Enfrento-a como a enfrentei toda a minha vida. Ei-la aqui: em mim. Chegou. Finalmente vou encontrar-me com o Pedrito. 
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Kasper



Tinha como nome Kasper, era de ascendência dinamarquesa e dava aulas na Universidade de Colstone. Como escandinavo, tinha o (bom/mau) hábito de beber cerveja. De um metro e noventa e oito, loiro, de cara rosada, dava aulas no departamento de filosofia e lecionava as cadeiras, ou unidades curriculares como agora se chamam, de filosofia da mente e ontologia, debruçando-se nesta última sobre o problema do livre-arbítrio.
Após sair da universidade, Kasper fora ao restaurante jantar. Comera um kebab, bebera uma cerveja para acompanhar enquanto dava uma olhada às notícias, que noticiavam o desaparecimento de duas jovens gémeas que havia dois dias desapareceram de casa e nunca mais se avistaram. Kasper refletia sobre o desaparecimento das jovens, enquanto garfava aqui e acolá; possivelmente ter-se-iam suicidado, uma vez que, segundo os registos que há não muito consultara, a taxa de suicídios em gémeos era elevadíssima, em razão de não se sabe bem porquê, pese embora as teorias dos psicólogos de algibeira; outra possibilidade, pensava Kasper, seria a de terem fugido de casa dos pais, por motivos que ao professor não lhe ocorreram, para não tardar voltarem, à falta de recursos financeiros. Outra ainda, e esta fortemente mais sublinhada na reflexão, seria a possibilidade de ambas terem sido raptadas a fim de experimentos, fossem eles do que fossem. Enfim, todas as possibilidades estão em aberto quando se trata de crime, se crime se tratava.
Eram vinte para as vinte e duas quando Kasper, já comido, saiu do restaurante rumo a sua casa. Tinha uma noite longa pela frente: ler alguns trabalhos que dera aos seus alunos para discorrerem sobre o livre-arbítrio, ler ainda a obra que iniciara há uma semana e que dissertava sobre a possibilidade, remota pensou, de a mente não existir sequer. E pretendia ainda escrever e adiantar mais um pouco do seu artigo científico para a revisa Science Of Mind, cujo editor há já umas semanas lhe vinha ligando para saber em que estado se encontrava, e cujo título era The Mind and the Flying Crocodile. Apostava sobremodo neste artigo, pois julgava seria tão marcante quanto o pequeno e revolucionário artigo de Edmund Gettier. Estava pois a sair do pequeno restaurante quando encontrou um ex aluno seu. Era o Paulocas. Tinha sido seu aluno há dois anos; simpatizara com ele desde início em virtude da argúcia de Paulocas, mas igualmente do seu ar retoução. Como escandinavo que era, achava sobeja graça à graça dos outros. E Paulocas tinha graça, que dava e vendia bastantemente. Foi pois com graça que Paulocas abordou o ex professor. Mais ou menos fora assim: ‘tão, Kasper, que te passa pela mente?, o que de imediato fez gargalhar o professor. Cumprimentaram-se, olá Paulocas, olá professor, como estás, como estás, que tens feito, servindo para ambos, e um respondeu que continuava a dar aulas, o outro que trabalhava num escritório de um advogado, um idiota de todo o tamanho, como todos os advogados são, arrogante de que suspeito não tem mente, acéfalo de primeira linha, mas como necessito, tenho de o gramar, enfim podia ser pior, muito embora às vezes só me apeteça cortar-lhe o pescoço. Kasper sorriu, timidamente.
Conquanto a urgência da leitura dos trabalhos que dera aos alunos, e bem assim, pelo menos, dar seguimento a um pouco mais do artigo que revolucionaria o mundo da filosofia da mente, Kasper acedeu ao convite do ex aluno de ir beber umas cervejas ao bar onde habitualmente Paulocas ia. Na verdade, Kasper gostava destes improvisos. Chegaram ambos ao bar, O Medas, assim se chamava. Estavam lá o Martim, o Afonso, o João Gomes, Sandra e ainda Gonçalo e Leonor, os gémeos. Todos haviam sido alunos do professor. E todos o receberam com graciosidade. Com efeito, Kasper era de bom trato, probo, inteligente, falador, respeitador e portanto boa companhia, não havendo quem não gostasse de estar com ele. Recordaram, todos, as aulas do professor e as suas indagações filosóficas que os deixavam com os pêlos em pé, a cabeça a fumegar de tanto pensar, os que pensavam, pois havia aqueles que continuavam isolados no seu mundo, e recordaram também as respostas que recebia da parte de alguns, umas fazendo rir toda a sala, outras deixando o próprio docente embaraçado, porque sem resposta. Duas da manhã eram agora, e Kasper achava que estava na hora de se ir embora com vista a pelo menos ler ainda alguns trabalhos. Despediu-se de todos, gostei de os ver, mas tenho de ir, até amanhã, ou quando calhar, até amanhã, professor, vá aparecendo, que aqui a cerveja é da boa, como pôde verificar e a sua cara não o desmente, e riram-se todos, Kasper saindo ainda com o sorriso na cara, e quem o dissera fora o Paulocas, como não podia ser outro.
A habitação de Kasper ficava a dez minutos do Medas, por isso fora a pé. Estava fria a noite, pois era inverno, mas céu limpo, lua cheia, e as estrelas brilhando como se nelas houvesse vida. Perto de casa, viu um carro arrancando com toda a velocidade, o que teve como efeito assustá-lo, porquanto vinha relaxado por causa da cerveja, e era normal ser a sua rua sossegada. A sua casa era geminada com outra, e estoutra com outra, e assim por diante. Em cada uma delas havia um jardim, uns mais bem tratados que outros: o de Kasper lindamente tratado. Passara os olhos por ele a fim de verificar se aqueles ou aquele que arrancara no carro a toda a velocidade tivera no seu jardim. Mas tudo parecia estar conforme. Nem uma marca de sapato na relva. Nada. Direcionou a chave à fechadura, abriu-a, entrou em casa, ligou a luz, e esta alumiou as estantes de livros que possuía; a sala muito bem arrumada; a cozinha sem uma pinga de gordura; dir-se-ia que era obsessivo-compulsivo. Mas não, não era. Gostava tão-só de ter tudo muito bem arrumado, pois isso lhe conferia paz. Deslocou-se ao quarto, aqui também tudo conforme a sua arrumação, despiu-se, e com vista a fazer passar um pouco da bebedeira que trazia, foi tomar um banho.
Estava Kasper no banho quando ouviu um barulho estrondoso, daqueles que pareciam ouvir-se no quarteirão ao lado. Saiu de rompante do banho, dirigiu-se à janela a fim de verificar se algo de anormal se passava, mas nada. Tudo estava como há dez minutos quando entrara. Limpou-se e vestiu roupa de dormir, embora ainda o não fosse. Fez um café, sentou-se à secretária e sacou de um cigarro, começou a ler os trabalhos dos alunos. Leu o primeiro, leu o segundo, franziu o olho ao terceiro, riu-se do quarto, teve vontade de rasgar o quinto, e o sexto deixou-o a meio. Enfim adormecera em cima da secretária.
Acordou eram cinco e cinquenta, estremunhado. Faltavam ainda algumas horas para ir para a universidade, ainda tinha algumas horas para dormir. Estava já a chegar ao quarto quando tornou a ouvir um barulho. Desta vez, porém, não tão estrondoso como o de há umas horas. Deteve-se a meio caminho do quarto. Deu meia volta e tornou a ir à janela. Aparentemente, tudo parecia normal. Quando todavia já está a dar meia volta, vê alguém curvar a casa em frente, desapareceu. Parecia-lhe que corria, mas fora tão rápido que não se apercebeu bem. Alguém era, contudo. Disso tenho a certeza. De repente, as certezas que até aí nunca o haviam suspeitar, assomaram-se-lhe como uma dor de cabeça forte, repentina. Deslocou-se, por conseguinte, à garagem, cuja vistoria ainda não tinha feito. Saiu pela porta traseira, atravessou um pequeno corredor de dez metros, abriu a porta da garagem. O carro estava lá. A tralha que lá tinha também. Enfim, parecia mais uma vez estar tudo normal. Vou dormir, disse.
Eram oito horas quando acordara. Devia estar na universidade às dez. Tomara o banho, o pequeno-almoço, lera o jornal, ouvira as notícias. Num e noutra, falava-se do sumiço das gémeas. Ao que se apurou, a polícia já estava com todos os dados do que havia passado, estava já no encalço do homem que as havia raptado, o assassino, se as assassinou, isto a polícia ainda não soubera. Kasper terminara o pequeno-almoço. Hoje decidira ir de carro, porquanto teria de passar por casa da ex-mulher ver os filhos, logo haveria de os ir buscar à escola e deixá-los na avó. Assim, deslocou-se à garagem a fim de pegar no carro. Pô-lo a trabalhar, meteu-o fora para aquecer um pouco, e fora fechar a porta da garagem. Antes, deslocou-se ao alçapão que se escondia por sob o carro e abriu-o. Tal como na casa tudo estava conforme, também por baixo da garagem tudo estava conforme. As gémeas dormiam estáticas como um morto no caixão.

Kasper arranca pois em direção à universidade. A polícia passa por ele a toda a velocidade e as sirenes ouvindo-se lá longe. Kasper chega à universidade. Começa novo dia. 
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Jaime





A despedida é um cato, cujos espinhos ferem o mais fundo da alma. Pela sexta vez iniciara o seu romance, e se nas outras vezes não havia gostado do que escrevera, parecia-lhe que desta acertara. Empolgara-se com a imagem recentemente criada. Soava-lhe bem. Apelava aos sentimentos, às emoções, conforme a imagem. Achara que tocaria fundo no leitor e o prenderia logo de início. O pior foi depois, quando não conseguiu escrever a segunda frase, nem a terceira, e como nem a segunda nem a terceira escrevera, a quarta lhe não aparecera, pois.
Jaime era um neófito na arte de escrever. Um aspirante a escritor. Mas não queria ser um escritor qualquer. Sonhara, havia muito, ser como os grandes autores e entrar na história indelével da literatura.
Desde os quatro anos que vivia com os tios, quando estes o acolheram após a tragédia que sucedera a seus pais. Aos olhos dos tios, como sói em boas famílias educadamente humildes, ele não era menos que os outros dois filhos: Paulo e José, gémeos. Mais velho que estes três anos, era como que um segundo pai de ambos. Protetor, conselheiro, e primo, claro. Os tios, Justino e Maria de Jesus, cuidavam que lhe não faltasse nada que não faltasse aos outros. O que aos dois faltasse, ao outro faltaria também, porque mais família de falta do que ter. Justino tio trabalhava numa drogaria; Maria de Jesus era mulher de limpezas. Amigos de infância, estava-lhes destinado serem para sempre um do outro. Quando chegados aos dezoito, Justino tio fora pedir a mão ao pai de Maria de Jesus, senhor Joaquim Malheiro, homem da lavoura e honrado pai de três filhas, que agora não vêm ao caso, tirante Maria de Jesus. Contara já Justino por diversas vezes a história caricata aos filhos, que foi a de, como sucedia com frequência à época, ter engravidado Maria de Jesus adrede a fim de lhe não ver negado o pedido por seu pai, o de Maria de Jesus, claro está, e não o dele, Justino, que esse gostava de Jesus como a uma filha. Outro remédio não teve senhor Joaquim Malheiro de assentir, dando em consequência a mão de sua filha.
Os gémeos agora com vinte e quatros anos, e portanto como o leitor aprioristicamente concluirá, Jaime está com vinte e sete, trabalhavam ambos na loja defronte a sua casa, na loja que antes fora de Margarido Oliveira e agora pertencia a João Palácio, que a comprara àquele quando estava prestes a ir-se aos céus, que, acreditamos, o acolheram de muito boa vontade e benevolência, mau grado os seus pecados. Um, Paulo, era o moço de recados; o outro, José, era o rapaz do armazém.
Jaime, por sua vez, trabalhava havia anos no armazém contíguo ao de João Palácio, e era homem dos sete ofícios.
O que ficou por dizer sobre as profissões de todos os que até agora retratamos deveu-se à pouca importância que têm para a história que nos propusemos contar. Portanto, cuidará o leitor de imaginar o que bem lhe aprouver.
Jaime aprendera o gosto pelas letras muito cedo. Começara a ler aos cinco anos, por intermédio do tio Fausto, irmão de Justino, solteiro bonacheirão mas dado às letras desde muito cedo, homem de saias desde muito jovem, que o incentivara sobremaneira a fim de poder ver no sobrinho aquilo que ele não logrou, a saber, tornar-se homem das letras. Via pois no sobrinho a compensatória ilusão do seu fracasso. Aos oito anos já Jaime lera uma boa parte dos clássicos, quase ao estilo milliano, mas considerando outras obras. Parece ter nascido para os livros, dizia Fausto ao irmão; este porém não tardava nunca na resposta, e à guisa dos pobres que cuidam que a condição social não lhes permite ser mais do que são, retorquia asseverando que os livros corrompiam o sobrinho, pois o melhor era dedicar-se ao que sabia fazer do que fazer aquilo para o qual não estava destinado. A pobreza é uma instituição, como a família, estabelecida com propósitos de ordem social. Quanto mais pobres, mais submissos. Quanto mais submissos, mais ordeiros. Aos doze havia lido mais do que todas as pessoas da vila. Jaime era, pois, um rapaz refinado intelectualmente e cujas competências literárias faziam dele o rapaz mais apetecido pelas jovens mulheres da vila, e bem assim pelos seus pais. Sem embargo das competências e qualidades literárias, Jaime confinava-se todavia à loja de João Palácio, exercendo os sete ofícios, o que demonstrava que era não só um rapaz de letras mas igualmente um jovem rapaz com qualidades várias atinentes ao que o labor lhe exigia.
Como em todas as vilas e cidades, há os feios e os bonitos, os fracos e fortes de espírito, os levianos e os santos, os ordeiros e os desordeiros, assim binariamente, como categoricamente parece ser constituído o mundo. Respeitante à regra estética, a vilazinha não é exceção. Deste modo, Dulce, pequeno espírito irreverente, é a beleza da vila, pretendida por todos e pedida por muitos, a seu pai, recusados todos. Filha de Mário Águas, comerciante conhecido pelo seu feitio irascível, o que não impediu de ver aqueles dirigirem-se-lhe a casa com vista a solicitar-lhe a mão da filha, e que, de outro modo não podia ser, rejeitados todos de imediato, como acima se disse e ora se repete, para que se não esqueça. Dulce tem vinte anos e uma beleza que não se assemelha a mulher alguma da vila. Há quem o diga, e não há meio de o confirmar (nesta vila, entenda-se), que não é filha do comerciante, porquanto a feiura dele contrasta sobremodo com a beleza dela. Mas isto são as más-línguas que o dizem, pois o que não falta são pais feios e filhos bonitos, como o inverso também é verdade. E terminamos por aqui os juízos de valor. Dulce constituiu-se pois no centro das atenções dos jovens rapazes da vila e por onde passa não há quem lhe não dedique uns olhares e suspiros apaixonados.
É o caso, por exemplo, dos filhos de Justino da drogaria. Paulo e Jaime, este por adoção. Já José parece ter enveredado por caminhos diferentes, o que contraria o dito que os gémeos sai iguaizinhos. Paulo ainda não fora daqueles que se fizeram ao caminho em direção da casa de Mário Águas a fim de solicitar a mão de Dulce. Jaime já o pensou, porém, mas tal como seu irmão a intenção tem-se ficado pelo pensamento. Um por cobardia; outro, porque a hora não chegou ainda. Ambos, porém, com intenção. Paulo apaixonara-se por Dulce aos dezasseis. Jaime aos vinte e seis. Aquele quando ainda na escola. Jaime quando a viu passar frente ao seu local de trabalho num dia em que Dulce passeava com as suas amigas.
Não cuidou Paulo de esconder a sua paixão, como de resto não cuidam muitos jovens da vila. Jaime, entendido assaz nas artes do amor mercê das leituras mas igualmente das concretizadas, ocultou como quem oculta um crime. O que, está-se bem de ver, tal como não há crime que não seja descoberto, não há ocultamento de amores que não seja desvelado (quer-se dizer: o crime é descoberto, mas nem sempre o criminoso).
Foi quando Jaime se apaixonou por Dulce que a sua dedicação aos livros e à escrita se começou a desvanecer. Não raro foram as vezes que pegando num livro não logrou passar da primeira página; e que, iniciando um texto com vista ao romance, não passou da primeira frase. Foi o que sucedeu, por exemplo, quando construíra e escrevera a frase acima: “A despedida é um cato, cujos espinhos ferem o mais fundo da alma.”. Desistia, e, permanecendo no quarto escuro, olhava distante o quarto vazio. Pensava em Dulce e nos planos que tinha para ambos. Casar, ter filhos, uma casa no campo, longe da vila, vivendo a família. Romantizava toda a parafernália do amor. Ele e Dulce na casa, no campo, os filhos correndo alegremente chamando pelo papá e mamã, e ele com os seus livros sob uma árvore enquanto Dulce tricotei-a camisolas para os miúdos. Passava noites romantizando. Nem parecia o Jaime que as gentes da vila conheceram, muito menos o Jaime a quem o tio Fausto dedicara-se a ensinar as artes das letras e da berzundela.
Correram dias e noites e Jaime não havia jeito de sair do estado enamorado em que se encontrava. Só quando Jaime soube que seu irmão Paulo fora pedir a mão de Dulce ao senhor Joaquim Malheiro e este aceitara é que tomou a resolução de sair do estado calamitoso em que permanecia há dias. Soubera-o pelo outro irmão, José, que o dissera em casa ao pai Justino. Este rejubilou de alegria, pois há muito que sonhava casar um dos filhos. Jaime sabia do enamoramento de Paulo por Dulce, mas nunca julgara que Paulo desse um passo em frente, tal o cobarde que era. Gostava imenso do irmão, mas sabia-o cobardolas. Por isso não lhe passou pela cabeça que o irmão se deixasse das cobardices.
Passaram-se semanas e Jaime foi aguentando todos os preparos para o casamento do irmão com Dulce. Nunca mais permanecera no vazio do quarto a romantizar. Mentalizara-se que Dulce se iria casar com seu irmão, pois era o melhor a fazer e não havia volta que se pudesse dar. Assim, retornou aos seus livros e à tentativa de escrever o seu romance, agora mais do que nunca, dizia de si para si. Devorou livros nas semanas em que se ia preparando o casamento, pois não havia melhor distração do que a leitura. De vez em quando saía para beber uns copos e conviver com alguns, poucos, amigos. De mulheres não queria saber. Dedicar-se-ia ao seu projeto literário, como agora lhe chamava e dizia aos amigos. Estes, porém, não sabiam da sua paixão. Achavam que aquela determinação se devia à inspiração, que outrora lhe havia faltado.
Chegou o dia, finalmente, do casório. Paulo fora o primeiro a levantar-se, em estado de ansiedade. O pai Justino, mais calmo, fora o terceiro. Maria Jesus havia sido a segunda. José fora o quarto. Jaime, porém, não fora o quinto. Não havia dormido, sequer. Não conseguira dormir um segundo que fosse, cogitando no casamento. Não parara de pensar que Dulce nunca lhe iria pertencer. E este pensamento descontrolava-o.
Era meio-dia quando Dulce entrou na igreja de Santa Eulália. Vestida de branco, conforme as boas regras do casamento católico, caminhava em direção ao altar, onde já permanecia Paulo, que a esperava com deleite. O padre iniciara o casamento. Tudo era lindo, todos admiravam Dulce e Paulo. Os homens invejavam Paulo, as mulheres invejavam o vestido. Quando o padre pergunta se alguém se opõe ao casamento, Jaime, que até então ainda não estava na igreja, diz eu, senhor padre. Toda a igreja o olha, espantada. Paulo surpreende-se. Dulce fica perplexa. E estando Paulo surpreendido e Dulce perplexa, já Dulce tomba no chão e Paulo tomba por cima dela, para choque geral.

Passaram-se anos, sem que o que aconteceu não fosse mencionado na vila. Jaime iniciara finalmente o seu romance, cujo início nunca o abandonara: “A despedida é um cato, cujos espinhos ferem o mais fundo da alma.”. 
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Isidoro




Talvez fossem cinco da manhã, talvez seis, o sol começava a sobrepor-se à lua espreitando o dia, iluminando a noite, ou manhã, o homem aparecera na esquina, cambaleando e com olhos de dormir, vestido de calças pretas e camisa azul-escuro amarrotada, ténis sujos, quase rotos na parte da frente, tonto, como quem, e com efeito assim foi, é acordado por um estrondo longínquo mas assaz percetível, estremunhado. A cara traduzia desconhecimento, pois olhava a rua que se lhe deparara defronte e toda ela era calma. Nem um ruído que seja. Nem um roncar de um carro, nem uma porta a abrir-se ou fechar-se, nem o som estrepitoso do metro, tão-pouco o roncar das chaminés das fábricas, e claro está, nem um som do falar de uma pessoa.
Percorreu a rua acima perscrutando o lado direito, o esquerdo, a frente e o atrás, até a diagonal. Só ouvia o silêncio, se o silêncio se pôde alguma vez ouvir. Quando chegou ao fim da rua, já o sol a iluminava. Era um sol lindo, como sempre o foi e é. Estremunhado antes, atónito ainda, teve o condão da claridade solar haver-lhe conferido alguma felicidade, mas ainda não alguma lucidez, porquanto havia percorrido trezentos metros, que era a distância da rua que havia corrido, e a inteligência lhe não explicara o porquê do silêncio, tampouco do deserto. Para quem acordara há pouco, e não se sabe há quanto estaria a dormir, o estômago pedia comida. Não só o estômago, mas igualmente a fraqueza do corpo lho exigia. Talvez seja a fome que me está a fazer alucinar, dissera para si, pois não o podia dizer a mais ninguém, sozinho estava. Destarte, antes de tudo o mais, precisava de se alimentar.
Neste ínterim, seja porque percorreu os trezentos metros lentamente, seja porque pensou na possível alucinação, o sol irradiava já um outro dia como sempre o fizera desde o seu nascimento, o homem empreendeu a busca por comida a fim de saciar a necessidade do corpo e da natureza. Fosse porque a cidade era grande, fosse por mero acaso, não tardou a encontrar uma superfície onde comida havia para satisfazer a fome e o corpo. Mais difícil, por espanto, seria escolher o que comer, pois se é certo que quando se tem fome qualquer estômago esquisito come o que lhe aparece, não menos o é que quando se tem fome e a comida abunda o mais difícil é escolher o que comer. E com efeito assim sucedeu com o homem que aparecera há bocado na esquina. Decidir entre comer algo doce ou algo salgado era tarefa que lhe não aprouvera de todo. Uma lata de salsicha, uma lata de atum, chouriço, batatas fritas, ou bolos, iogurtes, cereais, que talvez dado ser de manhã seriam os mais convenientes, enfim, tudo aquilo que se possa imaginar num supermercado. De entre toda a gama de produtos alimentícios escolhera o homem, e bem o entendemos, comer um pouco de tudo. Então, procurou por pão, ei-lo aqui, um pouco ressesso porém, o que o fez pensar por momentos que teria dormido mais do que dois dias pelo menos, mas pensou e logo deixou ir o pensamento visto a fome ser muita, sacou de uma lata de salsichas, chouriço, buscou batatas fritas, presunto, que ainda o não tinha visto e gostava sobremaneira, e quando tudo isto estava na sua frente pensou que uma cerveja lhe cairia bem, apesar de ser de manhã cedo, e eis então que foi procurar cerveja, aqui está ela, ou elas, pois levou mais do que uma. Abriu a garrafa de cerveja com os dentes, já as sandes de presunto, chouriço e salsichas estavam prontas, amarrou-se com os dentes que tinha a elas e deu uma trinca tão grande quanto a fome que tinha, o que originou o embrulhar-se da comida pela goela abaixo que o fez por pouco deixar de respirar, salvou-o a cerveja, que depressa amandou a comida para o estômago. Comendo agora mais devagar, saboreando a comida, olhava o supermercado com tristeza, que nem o saciar da fome lhe logrou alguma felicidade. Perguntava-se onde estaria toda a gente, porquê o deserto, que se teria passado, seria na cidade ou no mundo, de onde vim e porque dormi tanto, para onde vou e fazer o quê. Abriu mais uma cerveja, fez mais umas sandes, comeu fruta e iogurtes no fim. Não sendo comida cozinhada, era como se o tivesse sido. Abriu mais uma cerveja, e depois outra, e quando ia abrir outra adormeceu como um gato.
A manhã havia passado, a tarde entrara já há uma hora, quando acordou. Doía-lhe a cabeça. A custo lembrou-se como fora ali parar e do deserto e do silêncio da manhã. E se antes se havia assustado mas ainda esperançado que não fosse nada mais do que gazeta da população, quer dizer, no entendimento do homem, a população por razão desconhecida ter-se-ia deixado ficar a dormir ou ter-se-ia deslocado para a cidade próxima, agora e após ter-se recobrado, o pânico franzia-lhe o estômago apavorado de não saber o que fazer, como fazer, aonde ir, por onde começar, e mais, porquê a mim. Como porém ficar parado é morrer, conquanto o sucedido a ele mesmo o contraria, decidiu-se por ir à procura de alguém que lhe explicasse o que estava sucedendo. Saiu pois do supermercado, que de ora em diante seria o local de referência, até porque tinha comida de sobejo, virou ao lado direito, porquanto no esquerdo fora de onde viera, e desceu a rua caminhando lento, perscrutante e escrupulosamente a fim de não deixar de reter fosse o que fosse que lhe pudesse mostrar vida. Vida, porém, não encontrou nesta rua. Muito menos na seguinte. Menos ainda na seguinte da seguinte. E ainda da seguinte da seguinte da seguinte. E seguintes assim foram seguindo-se uns aos outros hoje, amanhã, depois de amanhã, semana a semana, mês a mês até que por fim deixou de buscar vida onde de facto vida não havia.
Mas não adiantemos a história deste homem que se nos apareceu por mero acaso, como mero acaso parece ser a vida deste homem.
No terceiro quarteirão entrou o homem num prédio, cuja porta se achava aberta. Passa primeiro pelo primeiro apartamento. Sozinho, o apartamento parece inabitável. Mais do que isso, parecia sequer não ter vestígios de vida. Mas isto de não ter vida talvez fosse mero acaso, como acaso nos parece tudo isto que temos vindo relatando. Tudo nele, no apartamento, parece conforme. Tem uma sala com sofás, televisão, mobília, estante com alguns livros. No quarto, há a habitual cama, guarda-vestidos, ou guarda-fatos, mesinha de cabeceira. Porém uma coisa reparou homem que não havia em toda a casa: fotografias. Roupa, havia, alguma. Toda a casa parecia ter sido habitada, mas mais pela conformidade dos objetos nela do que por vestígios de vida, ainda que vestígios sejam a roupa, a mobília, porém pareciam-lhe ter sido postos na casa sem alguma vez haver intenção de ser habitada. No apartamento seguinte o igual era parecido. No seguinte, a mesma coisa. Até ao último apartamento o igual subsistiu. Deslocou-se ao terraço do cimo do prédio. O sol, o a única coisa que parecia ter vida nesta vida de morte que era a deste homem, brilhava intensamente lá longe mirando o homem com tenaz curiosidade. Sentou-se. Sacou de um cigarro que trouxera do supermercado, acendei-o e fumou-o lentamente. Nisto pensou no que fazer. Já antes experimentara os telefones, mas debalde: não funcionavam. Ligou a televisão no quarto andar, mas em vão: não funcionava. Vasculhou ainda toda a mobília em busca de um bilhete, alguma coisa escrita que tivesse sido deixada para trás a informar quem para trás ficou o que ter-se-ia passado, mas em vão: nada. Pensava nisto quando fitava a cidade do cimo do prédio e a paisagem era normal como qualquer normal paisagem vista do cima de um prédio, tirante e tirando, claro está, o facto de não ter vida nem nas ruas nem nas casas.
Desceu ao primeiro apartamento, onde antes vira a estante dos livros. Pegou num livro ao acaso para o levar consigo. Saiu. Caminhou em direção à rua paralela, onde ainda não tinha estado. Pelo caminho reparou naquilo que antes não havia tomado atenção, a saber, que todas as portas estavam abertas. Eram elas as dos prédios, das lojas, das instituições públicas, dos supermercados, das lojas do pequeno comércio, dos cafés, como este onde o homem entra agora. Antes de passar a limpo todo o estabelecimento, era hora de deitar fora a cerveja que antes havia bebido, pelo que a casa de banho pareceu-lhe bem, conquanto não precisasse de mijar nela, pois não havia quem o visse, muito menos teria de seguir as regras do bom comportamento exigentes da sociedade, ou ainda que lhe aparecesse um polícia zeloso a dizer-lhe ó senhor, veja lá se quer uma ajudinha para o levar à esquadra. Antes aparecesse o polícia, pensara. Fez a sua necessidade e iniciou a vasculhar o café. Também aqui não havia vestígios de vida. Tudo era conforme a vida, mas vida nem vê-la, nem tê-la.
Estava prestes a sair quando, de relance, viu o que lhe pareceu ser um jornal escondido por debaixo do balcão. Subiu-lhe ao rosto alguma esperança. Pegou no jornal ansiosamente. Nas gordas estava escrito: “DIA 30 DE FEVEREIRO INICIAR-SE-Á O RECOLHER”. Nas páginas seguintes constava um longo texto que ocupava todo o jornal e de que só nos chegou este pequeno excerto, porquanto do lugar onde nos encontramos e da forma como o homem leu o jornal, só conseguimos ler este pouco que aqui apresentamos.  
“Caros concidadãos e concidadãs, por motivos já por todos nós sabidos e pelo qual temos passados neste último ano e meio, é meu dever, como presidente de todos vós, tomar as medidas que nenhum presidente alguma vez pretendeu tomar. (Aqui ao presidente sobreveio-lhe a verborreia.) Pois como vos acabei de dizer, em face da situação calamitosa por que passa a nossa sociedade, a qual não consegue mais sobreviver com o inesperado que nos assolou, pois ninguém consegue viver em dignidade quando a dignidade decide demitir-se, tenho a anunciar-vos que no dia 30 de Fevereiro pelas 12:00 procederemos à recolha de todos vós. É mister que estejais preparados quando os nossos bravos soldados baterem à vossa porta. Como antes já vos havia dito em texto anterior e preparatório, deveis deixar tudo para trás, à exepção das fotos que tiverdes, pois fundamentais para a sobrevivência da nossa história como povo. Inclusive as roupas. Deveis portanto levar apenas a roupa que queirais levar vestida, deixando pois toda a restante para trás, evitando por conseguinte qualquer contaminação.”
“Eis tudo que vos tenho a dizer.”
“Que deus esteja connosco nesta altura precisada.”
Terminou o homem de ler. O rosto mantinha-se impávido e sereno, passe o comum da expressão. Deslocou-se para o supermercado a fim de matar a fome, passe o comum da expressão, novamente. Comeu e bebeu, e no fim decidiu-se por ler o livro que trouxera e que começava assim:
“Privados de qualquer dignidade, imersos na maior abjeção moral por que um povo poderia passar, deslocou-se o povo TODO para …”




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Hermínio





São quatro horas e Hermínio aterra na bomba de gasolina contígua à sua casa. Por pouco não tinha gasolina suficiente para levar o carro até casa. Há uma hora que vinha em viagem, e há trinta minutos que sabia que a gasolina estava nas últimas. Porém não houve uma bomba de gasolina onde pudesse abastecer. Mas correu tudo bem: chegou à bomba perto de casa e daqui a minutos entrará nela. Depressa estacionará o carro na garagem, subirá as escadas que o levam ao repouso de anos, fará uma salada para enganar o estômago, beberá um uísque deitando-se no sofá e fumará uma cigarrilha. Depois adormecerá como se não tivesse dormido há dias, sonhará com a Isabel, uma e duas vezes, e perto de acordar tornará a sonhar com ela, e, finalmente, acordará e será de manhã. Outro dia.
Quando às vinte e uma Isabel telefonou, Hermínio estava no trabalho. Trabalhava no call center, que é o trabalho dos dias de hoje e do futuro, e fora o único que até hoje teve. Não ganhava mal, apesar da precaridade: chegava-lhe, e por vezes sobrava-lhe, para os gastos, que não eram muitos. O uísque era o que lhe levava o dinheiro (e a saúde também, dizia-lhe Isabel amiúde). Hermínio, preciso que venhas a minha casa rapidamente. Já vou, respondeu. Sempre que era solicitado por Isabel não olhava a meios para lhe responder às necessidades, fossem elas quais fossem. Neste dia, porém, ela não se alongou na urgência. Se urgência se tratava. Pelo caminho pensou diversas vezes o motivo por que Isabel lhe telefonara. Das vezes em que sucedeu, e não foram poucas, Isabel informava-o sempre de que se tratava. Desta, porém, não adiantou nada. A única coisa que sabia era que a voz dela suspirava medo, que lhe sentiu a voz trémula, mais uns ruídos de fundo impercetíveis. Arrancou com a força que o Fiat Punto podia e dirigiu-se a casa dela.
A noite tinha já ido e os raios do sol entravam pela janela do quarto, quando Hermínio se levantou. Primeira coisa: sentar-se no sofá e fumar um cigarro. Considerava um dos maiores prazeres do seu dia. Depois o habitual: tomar banho, o pequeno-almoço enquanto vê as primeiras notícias do dia, buscar o jornal que o ardina habitualmente lhe deixa, ler na diagonal que o “governo pretende aumentar impostos”, e que determinado “homem mata mulher e filha”, sem esquecer o “agente preso por tráfico de droga”, ou ainda aquela que nos provoca risos matinais à guisa de receita diária para ultrapassar as dores quotidianas, como esta que aqui vai escrita, a saber, “ministro da economia diz que a economia para o próximo ano vai crescer 7%”, e ri-se Hermínio, sem contudo deixar de pensar que os governantes são bons comediantes, muito menos entender como pode o aumento de impostos resultar numa melhoria da economia. Pensou isto, mas já deixou para trás, pois agora é hora de sair. Olhou os post-it que estavam no frigorífico, onde tinha escrupulosamente todas as atividades para realizar, saiu (finalmente).
Isabel estava já, desesperada, na porta de casa à espera de Hermínio, quando o viu a chegar. Este saiu com pressa e dirigiu-se-lhe perguntando o que se passava, reparando nas lágrimas que escorriam pela cara dela. Com efeito, chorava e demonstrava uma cara de preocupação como nunca antes lhe vira. Que se passa, perguntou. Ela nada respondeu, limitando-se a abraçá-lo com tremenda força que quase lhe partia uma costela. Como nada dissesse, ele insistiu na pergunta, mas uma vez mais não obteve resposta. Não vim aqui para nada, Isabel, diz-me lá o que se passa, é que deixei o trabalho para vir ter contigo. A custo, a soluço, Isabel lá iniciou a contar.
José Maria era o chefe tresloucado de Hermínio. Conheceram-se desde que Hermínio fora para lá trabalhar e desde então são amigos. Partilham não só a amizade mas também a loucura. Onde um está, está o outro. Mas nem um nem outro são a cara e o cu do outro. Cada qual com a sua parte que lhes corresponde, é o que revidam quando alguém mais afoito insinua-lhes a putativa homossexualidade. Com efeito, e em abono da verdade para que as dúvidas não se instalem, nem um nem outro são maricas. Se alguma coisa de maricadas têm deve-se mais à cobardia do que à mariquice. José Maria tinha apresentado Isabel a Hermínio há uns meses no café do Manuel da Elvira. O primeiro morria de amores por ela, mas nunca foi correspondido. Hermínio simpatizou com ela, mas não lhe caiu os amores. A partir desse dia, porém, Hermínio e Isabel começaram a sair. Não raro se encontravam ora na casa dela, ora na dele, mas as mais das vezes no café do Gusmão, a quem muita gente confiava os seus segredos mercê da sensibilidade que denotava. Hermínio via nela um travesseiro, à falta de melhor vocábulo e metáfora; Isabel via nele uma boa cama. Portanto, ele apoiava-se nela, ela dormia nele.
Segundo constava no post-it de Hermínio:
1 – Passar nos pais às 10;
2 – Ir à livraria buscar o livro encomendado há uma semana;
3 – Buscar os panados à Tia Carla;
4 – Pagar as contas da luz e tv cabo, quando de regresso na caixa de multibanco perto da estação dos comboios;
5 – Depois do almoço ir tomar café com o António;
6 – Telefonar, sem falta, à Maria João dando-lhe os parabéns.
7 – Tirando o ponto 5, tudo o resto pode ser noutra ordem.
8 – Ir às 20 horas à casa da Isabel.
O melhor que temos a fazer, Isabel, é arrumar tudo. Limpar tudo muito limpo. Tens lixivia? Claro que tens. Vai buscar um pano e um balde de água. Isabel procedeu de seguida. Deixa-te de choros agora. Não temos tempo a perder, caso contrário quem perde és tu. Começa por esse lado, que eu começo por este. Passa o pano sempre na lixivia antes de esfregares, ok? No que te metes, rapariga. Que raio te deu para fazeres este disparate de todo tamanho. Não, não precisas explicar, é que nem explicação há para o que fizeste. Esperemos que ninguém tenha ouvido, senão estás completamente fodida. Sabes, não sabes? Sim, sim, mesmo que os vizinhos não estejam, há sempre alguém que vê. As paredes, mesmo sem ninguém em casa, veem sempre. Não, não é deixa-te de coisas, Hermínio. Sabes bem que o tempo corre. E corre desde que o mundo é mundo. Ou desde que o universo é universo. Depois de limparmos isto, levo-te a casa dos teus pais, e eu vou para casa. Ficas lá até sabermos alguma coisa, ok? Não fales com ninguém. Ah, telefonaste a mais alguém? Pois claro, fizeste bem. Foi melhor assim. Arruma o livro. Melhor, pelo caminho chegamos-lhe o lume. Talvez ali no monte dos Picos.
Eram exatamente dez horas da manhã quando Hermínio chegou a casa dos pais. A casa destes situava-se a três quarteirões. A mãe estava a estender a roupa que havia acabado de lavar, quando Hermínio disse olá mãe. O pai, por seu turno, estava em volta do carro, que havia dias lhe dava problemas. Deu um beijo à mãe, um beijo ao pai, como estão, como vão as coisas aqui por casa, como está a Mia, como está o Pulgas, a Ana tem passado aqui, ontem via no centro comercial com o João. Beijaram-se e despediram-se. (Por palavras de circunstâncias que sejam, por pouco que sejam os minutos, os pais sempre gostam da visita dos filhos.) Passarei, sim, mãe, disse Hermínio, referindo-se à passagem pela casa da Tia Carla que lhe tinha os panados prontos. Às 14:21 encontrou-se com o António para o café habitual (antes pagou as contas). Às 14:45 foi buscar o livro. Tratava-se de um livro sobre uma mulher com a síndrome dos nomes próprios. Uma doença rara que consistia na obsessão pelos nomes próprios e que, quando levada ao extremo, podia levar os doentes a cometer as mais variadas loucuras. Tanto quando se sabe, ainda não há cura para tal doença, e diz a melhor medicina que não se espera venha a haver.
Eram 19:58 quando Hermínio se encontrou com Isabel.
Quando pararam no monte dos Picos para chegar lume ao livro, Isabel tremia como se saída das águas da Antártida. Hermínio dissera-lhe para se acalmar, pois era o melhor a fazer e de nada adiantava estar assim. Isabel, contudo, não se acalmava. No íntimo, saberia que nunca mais teria calma na sua vida. A vida não seria mais a mesma desde essa noite. Que iria dizer aos pais? Que farei de ora em diante? Como explicar que nunca mais poderei voltar a casa? Que vai ser de mim? E pior ainda, e se descobrem? Estas e outras dúvidas assomavam-se-lhe à cabeça com a força de uma avalanche.
Olá, sou eu, abre, disse Hermínio. Como estás, com saudades minhas? Algumas, disse Isabel com um sorriso nos lábios. Beijaram-se. Fiz entrecosto, vais gostar. Espero que sim, pelo menos costumo gostar. Queres que vá buscar vinho? Não é preciso, tenho aqui um tinto que comprei ontem. Ah, ok, melhor então. Senta-te um pouco enquanto termino, sim? Sim, aproveito e vou ler este livro que fui comprar há bocado. Isso mesmo, faz isso.
Passavam trinta minutos das duas quando Hermínio deixou Isabel na casa dos seus pais. Na despedida disse-lhe, novamente, para se acalmar, porquanto tudo iria correr bem. Não penses nisso, toma algo para dormires. Vou ver se os meus pais têm algum medicamento para dormir. Faz isso, sim. Vai com calma, sim, disse ela a Hermínio. Este arrancou em direção a sua casa.

Isabel estava com um vestido preto, curto, quando terminava de cozinhar o entrecosto. Hermínio lia o livro e de quando em vez dava uma espreitadela para a cozinha para lhe ver a silhueta. Conhecia-a bem, mas nunca deixara de a admirar. Isabel era de facto muito bem-feita. E isso agradava-lhe sobremaneira. Como a vontade não parasse, levantou-se e foi à cozinha ter com ela, e ato contínuo estavam ambos no quarto. Beijaram-se, passearam as mãos no corpo um do outro, trocaram o que havia de ser trocado. Quando Hermínio estava no clímax, lembrou-se que não havia cumprido todo o post-it que havia preparado escrupulosamente para esse dia, e nesse momento de recordação exclama Maria João. Isabel parou, olhou-o. Hermínio pensou: esta não constava no meu post-it. 
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Guilherme




    Certo dia passei defronte a um café cujas esplanadas estavam repletas de turistas. No meio deles encontrava-se um casal. Uma mulher com cara de anjo. Um homem com cara de demónio. Ambos, porém, filhos de deus – que todos os somos, sói dizer-se, e não é por ter-se cara de diabo que somos filhos deste e não daquele: quando muito, na vida, nos aproximamos do diabo, por destino ou por vocação (o que não deixa de ser irónico, porquanto se somos fruto de deus e ele nos escreve o destino, significa então que eles nos destinou ao seu inimigo de sempre; se por vocação, aplica-se o mesmo. Raio de deus este que nos destina ao seu inimigo!). O Dito fulano com cara de diabo não só tinha cara de diabo como praticava diabruras.
Dias depois de os haver visto, era notícia em todos os jornais que a cara do diabo tinha matado a cara de anjo, numa ruela, à facada. Alegadamente por motivos passionais, assim diziam os jornais, jornalistas e alguns jornaleiros. A opinião pública depressa condenou a cara de diabo. Mais a mais porque tinha cara de diabo, e do diabo não pode vir nunca coisa boa, dizia-se. Alguns jornais escreviam assim:
“HOMEM MATA NAMORADA À FACADA”
“Um homem de 29 anos matou ontem a namorada à facada na rua José Gomes de Castro. Alegadamente, os motivos foram passionais. O homem entregou-se à polícia uma hora depois.
 Segundo apurou o nosso jornal perto dos vizinhos, o casal há já muito que discutia. Uma vizinha disse ao nosso jornal que “a cara de diabo gostava da pinga, talvez estivesse com os copos nessa noite”. Um vizinho, por seu turno, disse que a “cara de anjo traía a cara de diabo”.
O homem será apresentado a tribunal amanhã de manhã para saber a medida de coação.”
Outro jornal escreveu:
“MULHER MORTA À FACADA POR NAMORADO”
“Uma mulher foi morta esta noite, à facada, alegadamente pelo namorado. Consta-se que o que está na origem do brutal assassínio foram motivos passionais. O homem entregou-se à polícia pouco tempo depois de ter assassinado a companheira. Será apresentado amanhã a tribunal.”
Quando nesse dia passei por estas duas pessoas esperava pelos amigos do trabalho a fim de irmos comemorar os anos do Quim Truta, que fazia os seus cinquenta anos.
Conhecia o Quim Truta há já vinte e cinco anos, desde o tempo em que fora trabalhar para o Armazém de Todo o Tipo. O Truta fora desde logo um dos primeiros com quem eu simpatizara. Mais tarde comecei a dar-me com Zé Pulga, depois com o Tó Comércio, e semanas depois dei-me com a Maria do Rosário, a mulher que tratava de tudo que respeitasse a documentação de Todo o Tipo. Em Todo o Tipo fazíamos um pouco de tudo e tratávamos um pouco de Tudo. Tudo era o mais fácil que podíamos fazer. Mas também fazíamos Tudo com o Fazer, que era dos trabalhos mais difíceis, mormente quando se conciliava com o Tudo. Ninguém gostava de ser chamado para Fazer Tudo. Fazer Tudo era extenuante. Quem num dia estivesse escalado para a parte do Fazer Tudo certamente que não só fazia tudo como ainda tinha de tudo fazer. Era um ai dos diabos.
No dia da morte da cara de anjo estivéramos, eu, o Truta e mais o Tó Comércio, na parte do Fazer Tudo. Como erámos amigos há bastantes anos, era o bastante para que o trabalho, mau grado o cansaço, nos corresse pelo melhor; mais ainda, nesse dia, porque sabíamos que à noite iríamos ter festa. O Truta nesse dia não parava de dizer que iria apanhar uma grande piela nessa noite. O Tó só nos falava da Maria do Rosário, com quem há umas semanas andava metido na cama. Eu, enfim, ouvi-os, ria-me e pensava nas horas que faltavam para sairmos do trabalho. Quando finalmente chegou a hora de sairmos, o meu alívio era do tamanho da piela que o Truta viria a ter. Marcáramos para nos encontrar dali a uma hora na rua João Andrade Pires de Caramelo, paralela à rua José Gomes de Castro, onde, como vos disse, sucedeu o fatídico sucedido.
Eram vinte para as nove quando cheguei à rua Caramelo. O Truta ainda não tinha vindo. O Tó fazia horas para não chegar ao mesmo tempo da Rosário, pois a despeito de nós sabermos, não sabia ela que nós sabíamos. Estava então eu na espera. Telefonei ao Truta, disse-me que demorava uns vinte minutos, telefonei ao Tó, disse-me que demoraria trinta minutos. E não telefonei à Rosário, porque certamente com o Tó. Pois então decidi que o melhor era ir beber um copo, talvez um porto, talvez um uísque, talvez o que calhasse, logo se veria, se não fosse mais. Pensei e fiz, que o mais difícil não é fazer mas pensar. Tinha sabido pelo Marrecos que o novo café que abrira na Gomes Castro tinha umas pingas boas, que o melhor era provar para ver do que falo, dizia-me o Marrecos, uma pinga dos diabos, daquelas que te põe a achar que a lua é uma fatia de queijo, disse-me ele com o estilo que era sua prática.
Estava eu a pedir uma das pingas com os diabos, e que diabo era, o Truta telefona-me a dizer que já estava na Caramelo. Bebi-a, fechando os olhos, de uma só golada. Ardeu-me a goela, e o corpo estremeceu todo por dentro enquanto por fora arrepiava, e não era do frio. Saí de rompante a fim de ir ter com o Truta. Pelo caminho, que não eram mais que uns 800 metros, a noite já tinha nascido, a lua era já queijo, a iluminação era opaca, os carros andavam sem se mexer, e os que se mexiam estavam parados, as minhas pernas estavam com uma força descomunal e todavia custava-me andar. A custo, cheguei ao Truta, que me esperava há já uns dez minutos. Perguntou-me onde tinha ido, porque antes quando me telefonara não houvera oportunidade de dizer onde estava. A pergunta, porém, entrou no ouvido direito e não saiu pelo esquerdo, como é hábito fazer, mas instalou-se no canto mais pequeno do cérebro, talvez da mente, se nela acreditamos, e ali ficou por vários dias sem eu saber como a expulsar. Pois estava eu a haver-me com a pergunta no cantinho do cérebro quando o Tó chegou, seguido minutos depois a Rosário. Ambos perguntaram-me se esperava há muito, mas tal como a anterior, foi parar ao canto do cérebro, mas desta vez ao outro canto. De modo que, tinha dois cantos do cérebro com duas perguntas. Quando se tem perguntas no cérebro o melhor é responder-lhes. Eu porém não lhes conseguia responder. Mantiveram-se ali por vários e variados dias (ainda hoje as penso ali).
Fomos os quatro à tasca do senhor Julião, onde erámos habituais clientes e onde a comida tinha o sabor a comida, quer dizer, era daquelas comidas que saboreamos à primeira garfada e não queremos parar à última. E com efeito assim o foi nessa noite, como de resto o era sempre. Uma garfada e o Truta come tudo, que hoje pago eu, outra garfada e o Tó eu só quero é apanhar uma grande piela, outra garfada, e a Rosário não espero pela hora de estar em casa, isto não o disse, pensou-o apenas, outra garfada e eu não sei quem sou nem onde estou, nem quem são estes que ora se riem para mim, isto pensei eu falando todavia que a comida era boa (conseguia fazer estas duas coisas que praticamente são impossíveis, quais sejam, falar uma coisa e estar a pensar noutra).
Atalho agora para que vos não percais no relato. Pois seja então. O Truta dissera-nos que depois de jantarmos tínhamos de ir à tasca onde se bebia umas bebidas dos diabos, porquanto o Marrecos lhe dissera que a bebida era boa como presunto com pão acompanhado de vinho tinto. A comparação era do Marrecos, que como sabeis já, dizia as coisas com estilo, pois era da sua prática. Ouvi o Truta, mas não lhe disse que já lá estivera. O Tó acenou que sim senhor iríamos lá beber a bebida dos diabos, a Rosário também, não é Rosário, esta não respondeu visto que apenas pensava na sua cama, mas como o Tó queria ir, ela não diria que não.
Pagámos a jantarada e deslocámo-nos à tasca com bebidas dos diabos. Pelo meio os carros que andavam continuavam parados, os parados a andar, a lua estava como queijo ainda, a iluminação opaca, a força das minhas pernas era descomunal e contudo arrastava-me a custo, tanto custo que o pouco mais de um quilómetro pareceu-me a eternidade da morte. Eis-nos então na tasca com bebidas dos diabos. O senhor das bebidas dos diabos ainda lá estava, não podia ser de outro modo. Olhou-me e pareceu-me não reconhecer. O Truta pediu as bebidas, o Tó sentou-se, a Rosário foi à casa de banho, e eu mantive-me de pé, pois o meu corpo enrijecera e não se queria sentar, por paradoxal que vos possa parecer. Quando a Rosário chegou, o Tó propusera bebermos a bebida dos diabos de uma assentada. E assentado bebi a bebida de uma assentada. Outra, dizia o Truta. E outra de assentada. E outra, dizia o Tó. A Rosário calou-se, embora pouco tivesse falado. O Truta falava ininterruptamente. O Tó tagarelava ininterruptamente. Eu não sabia se falava, se estava calado. O meu cérebro não processava nada. A Rosário calada. Quando nos levantámos, o meu corpo estava tão pesado que era uma tonelada de sentimentos inexplicáveis. O Truta saiu pela porta fora e não disse nada a ninguém. O Tó saiu e deixou a Rosário dependurada. A Rosário saiu e não pensou no Tó. Eu saí e não pensei em nada.
Quando estou na rua, já o Truta, o Tó e a Rosário não se viam. O Truta arremeteu pela Gomes Castro. O Tó apressou-me pela Dr. Costas, que cortava a meio a Gomes Castro. A Rosário foi pela Gomes Castro. Eu não sei bem por onde fui, apenas que cheguei a casa. Tinha a roupa encharcada em sangue. Deitei-me no sofá e adormeci. De manhã pus a roupa para lavar. O Truta telefona-me apavorado tenho a roupa com sangue, sabes de alguma coisa. Não, disse eu. O Tó bate-me à porta e mostra-me a roupa dele, também com sangue, e pergunta-me o mesmo que o Truta, não, não sabia. A Rosário não apareceu nem telefonou.
O cara de diabo foi condenado a quinze anos de prisão. Escrevem os jornais:
“HOMEM QUE MATOU NAMORADA À FACADA LEVA 15 ANOS DE PRISÃO.”
“Homem leva 15 anos de prisão.
“Foi há um ano que Pedro Costas matou a namorada à facada na rua Gomes Castro. O homicida declarou-se culpado pelo assassínio da namorada. Esta fora morta com 39 facadas em todo corpo, tendo 27 delas sido na cabeça. O acto chocou a comunidade da cidade, que ainda hoje não sabe o que terá passado pela cabeça do homicida.”

Ao senhor das bebidas dos diabos continua-lhe a correr bem o negócio. 
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