Quimbé




De cor vermelho vivo como só o sangue tem estava a banheira onde Quimbé tentara pela quinquagésima vez cometer suicídio. Foi-o encontrar banhado no mar piranga a vizinha Silvéria após se ter dado conta que ele não havia saído para o trabalho nessa manhã. Das infrutíferas cinquenta vezes que tentara o suicídio Silvéria encontrou-o à volta de catorze. O que quer dizer que as catorze foram em casa. As restantes tentara Quimbé em variegados sítios mas com o mesmo resultado. Certa ocasião, na esperança da compaixão e bondade de deus, tivera a infeliz, ou feliz, ideia de o tentar na igreja. Deus porém não estava nos seus dias e não lhe fizera a vontade.
Desde que começara a ter maturidade intelectual para meditar sobre a suicídio não mais parara de o  tentar cometer. Não o promovia uma vontade de morrer por morrer, tão-pouco uma depressão moderna, nem a infelicidade que afeta os mais desafortunados, nada enfim sustentava a ideia de suicídio. Não tinha razões para viver, mas também as não tinha para morrer. Poder-se-ia dizer que era um impulso que lhe provinha das mais profundas e obscuras razões do ser humano, mas cujas explicações as não encontrava na metafísica do suicídio e as não conseguia explicar a partir da lógica filosófica. De resto, tão-pouco as premissas as conseguira formular, tal era o vazio do impulso que o instigava.  
Quimbé nascera prematuramente no hospital Dona Maria José de Lencastre às vinte e três horas e cinquenta e nove minutos e cinquenta e nove segundos do dia quinquagésimo do ano de mil novecentos e setenta e quatro quando a sua mãe viera de táxi ali parar depois de ter sentido que o bebé estava impaciente por vir ao mundo. Nessa noite o pai de Quimbé não estivera presente porque estava a fazer o turno da noite e a mulher não lhe telefonara para o trabalho a avisar que o bebé iria nascer. Quando de manhã lhe chegou a notícia de que a sua mulher tinha dado à luz e estava no hospital dirigiu-se para ele apressadamente, mas não a tempo de dar o último beijo a sua esposa, que ali viera a morrer depois de complicações de parto. Nessa noite o pai de Quimbé, que se chamava Augusto Andrade de Pinto Vasconcelos, por vezes chamado pelo primeiro nome e outras pelo segundo, consoante a familiaridade de quem o chamava, experimentaria o ambíguo e inexorável sentimento de quem perde ganhando. O bebezinho nascera prematuro mas bem de saúde, lindo como o são todos os bebés aos olhos dos pais; a mulher todavia desaparecer-lhe-ia para sempre. A última vez que a vira fora na noite anterior quando saíra para o trabalho e lhe dera o seu habitual e terno beijo, ela ali com a barriga grande como a de um Sancho Pança, bela como uma árvore com flores da primavera, e assim quis permanecer com essa imagem última, ao invés de a ver uma última jazendo morta como uma flor murcha de outono. Augusto Andrade viria a morrer dois anos depois de cancro da próstata. Quimbé estaria de aí em diante aos cuidados da sua tia Josefina Vasconcelos Pinto, irmã de seu pai, e casada com Amândio Carlos Loureiro.
Crescera e fora educado como qualquer criança normal. Dos tios não reza que lhe faltassem com nada. A infância passou-a com alegria. A adolescência com felicidade. E chegou a adulto bem com a vida. E em adulto viveria de bem com ela. O que com efeito não lidava bem era com a morte; esse enigma que o consumia desde que iniciara a pensar no suicídio como coisa metafisica, ou fosse lá o que fosse que o impelia a cometê-lo. Não se lhe conheciam desilusões de amores, que tantas vezes são causa de suicídios. De igual forma não se lhe conheciam problemas de identidade. Ou género. Ou sexuais. Nem vícios que o levassem a querer cometer suicídio, como drogas ou álcool. Tanto quanto a ciência da medicina psiquiátrica sabia, Quimbé não enquadrava em nada que lhe pudesse ser diagnosticado. De modo que, após vários exames e estadas em hospitais psiquiátricos Quimbé deixara de ser internado, pois, segundo lhe diziam os médicos, mais mal seria ali estar internado do que deixá-lo fazer a sua vida normal. Assim Quimbé passou a ter uma vida normal depois de alguns anos a lidar com os psiquiatras, que olhavam aquele caso como uma anormalidade dentro da ciência psiquiátrica. Era a exceção. Os hospitais quando o recebiam depois de mais uma tentativa frustrada logo o mandavam para casa. E ele em todas estas ocasiões não disse nem fez nada que indicasse que estaria falto de razão, afora a propensão para o suicídio, cujas causas eram ainda desconhecidas e talvez nunca se viessem a saber, segundo alguns afirmavam e conjeturavam.
Passaram-se os anos de internamentos e exames e consultas diárias e Quimbé voltaria à sua habitual rotina. Saía pela manhã para o trabalho, chegava ao fim da tarde do trabalho. Dava os bons dias a Silvéria pela manhã, e as boas tardes pela tarde. Os fins-de-semana passava-os em casa a ver televisão ou a ler qualquer coisa que o distraísse. Anos e anos de rotina que só era quebrada pelas frequentes tentativas de suicídio.
Havia duas semanas, contudo, que a rotina fora quebrada. Silvéria não o via desde então. Passara a sair para o trabalho mais cedo do que o habitual e a chegar mais tarde do que o normal. Ao fim de uma semana Silvéria, habituada estava, passou contar a sua saída uma hora mais cedo e sua chegada três horas mais tarde. A segunda semana já a rotina, agora diferente, estava instalada. Os fins-de-semana mantiveram-se iguais. A causa era uma moça que havia conhecido no trabalho. O seu nome era Débora, e era tão formosa quanto Dulcineia de Toboso era aos olhos de Dom Quixote. Quimbé afeiçoara-se a ela de uma forma cândida mas não apaixonada. Gostava das poucas horas que partilhava com ela à noite antes de ir para casa. Ela era afetuosa, atenta e boa ouvinte, embora fossem poucas as vezes que Quimbé falava. Mas quando o fazia, ela ouvia atentamente. A conversa que mais tempo durou entre ambos fora quando ela, após saber que ele propendia a tentar cometer suicídios, lhe perguntara das razões para aqueles ataques suicidas. Ele dissertara sobre a metafisica do suicídio, a metafisica da morte, as estadas nos hospitais psiquiátricos e os exames realizados, e ela ouvira tudo com assaz atenção sem todavia perceber as razões para a causa, que ele também lhas não deu porque as não sabia. Ela achara aquilo tudo incomum, e não descobrira com efeito uma razão que fosse para o achar maluco. Com efeito, ele parecera-lhe sempre muito lúcido, inteligente. De modo que, não cessou ali os encontros. Antes, na verdade, ficou cada vez mais curiosa para decifrar aquele mistério dos suicídios. Debalde encontrou razões para ele.
Certo dia ele contara-lhe todas as vezes que tentara o suicídio. Quando foi a primeira vez, os sítios onde o fizera, quem o encontrou e chamou a ambulância ou o levou para o hospital. Havia alguma morbidez em tudo aquilo, pensava, mas dele nada lhe indicava que ele fosse desequilibrado, tal a eloquência e lucidez com que explicava tudo sem falhar qualquer pormenor. Na verdade, pensava ela, era provavelmente um dos homens mais inteligentes com quem alguma vez estivera. Os pormenores, os detalhes, a minuciosidade indicavam uma memória prodigiosa. Poder-se-ia pensar, meditava ela, que a cada tentativa se dava um apagamento. Mas ele recordava tudo, como se estivesse nesse instante a viver esses momentos.
Contara-lhe a primeira vez. Fora um dia, tinha ele dezasseis anos e estava na escola, em que pedira à professora para ir à casa de banho. Ela acedeu, e ele lá se movera para a casa de banho. Levara consigo duas esferográficas e com elas furara os pulsos até eles verterem o sangue. Vira o sangue sair como nos filmes, vermelho, a ensanguentar o chão e ele a encostar-se às paredes da casa de banho, a sentar-se e ali ficar até vir a morte. Estivera desperto alguns minutos, largos minutos olhando o sangue a sair dos seus pulsos até adormecer como se a morte estivesse a chegar. Não chegara. E quem chegara fora o Teófilo que o encontrara banhado em sangue e imediatamente avisara na escola.  A segunda vez fora em casa. Estava sozinho. Foi à cozinha e pegou numa faca e espetara-a no peito. Desmaiou num instante. A tia encontrá-lo-ia daí a meia hora. Felizmente, dissera a tia, não fora no coração. A terceira fora mais engenhosa. Certa noite saíra na bicicleta e fora à ponte e dali se mandou ao rio. Mas alguém que passava naquele momento vira-o e heroicamente mergulhou para o salvar. A mais espectacular tinha sido na igreja. Havia conhecido uns tipos na escola que se metiam no tráfico e pedira-lhes uma pistola. Os tipos já sabiam que ele era meio maluco, que era o que se dizia na escola a seu respeito, e negaram-lha. Mas ele insistiu que não era para cometer suicídio, que estava curado e a queria para dar uns tiros apenas. Lá lha arranjaram. Então um domingo de manhã fora assistir à missa e, estando a igreja a abarrotar de gente, dera um tiro na cabeça. Mas infelizmente, sem saber como, a bala apenas perfurara um pouco do crânio sem lhe afetar nada do cérebro. A mais difícil de executar fora quando se tentou enforcar. Mas aqui não se deteve em pormenores. E assim foi contando todas as tentativas, e ela escutando-as, chocada.
A cada tentativa, mais forte Quimbé se sentia. Por cada uma falhada outra mais se realizava. Durante as semanas em que estivera com Débora não pensou em cometer suicídio. De maneira que, por ser ela uma distração achou por bem cessar ali os encontros. Quimbé dissera-lhe o que pensava; que por causa dela o estar a distrair das suas tentativas o melhor seria ali terminarem os encontros. Pedia desculpa e desejava-lhe muitas felicidades. Ela, incrédula, chorou.

Então foi quando ele tentara nessa manhã a sua quinquagésima tentativa. Silvéria, atenta como desde há muito fazia, fora encontrá-lo banhado em sangue na banheira. De imediato chamara o INEM. Felizmente ainda estava vivo. Meteram-no na ambulância e arrancaram a toda a velocidade para o hospital. A velocidade que a ambulância atingira indicava, para quem a via passar, que ali ia alguém às portas da morte. Mas Quimbé, na verdade e a despeito da sua quinquagésima tentativa, estava bem vivo, antes apenas desmaiado em virtude da perda de sangue. Estava já a ambulância na última rotunda que dava para o hospital quando o motorista perdeu o controlo dela e a fez capotar. Conta quem viu que dera acima de umas dez cambalhotas. Quando outra chegou para os socorrer, não se acreditava que aquilo que ali restava podia ter sido uma ambulância. Os tripulantes infelizmente tinham morrido todos. Quimbé, todavia e (in)felizmente estava vivo.