Elmano
domingo, 23 de dezembro de 2012
Por toda a sala encontravam-se garrafas de uísque e beatas de cigarros que faziam companhia aos quadros de Lucien Freud e Francis Bacon, que estavam dependurados em duas das paredes da sala, e ao livro O Fantasma de Harlot, de Norman Mailer, que estava em cima de uma pequena mesa. O cheiro a tabaco impregnava toda a sala. Elmano havia passado a noite a ler o livro de Mailer acompanhado de uísque, cigarros e cocaína. Era hábito seu este de passar as noites enfrascando uísque enquanto lia um livro e consumia cocaína. Mas havia uma semana que o fazia todos os dias e que não dormia. Sentia-se exausto e porém sem sono. A cocaína, pensava ele, talvez lhe tirasse o sono. Mas como abdicar dela, indagava-se. Provocava-lhe uma boa sensação quando acompanhada de uísque e uma boa leitura. Sentia-se, enfim, apesar do cansaço, que estava a aproveitar a vida, não a desperdiçando a dormir, ou em coisas inúteis. De saída de casa pela manhã, após um duche, e um cheiro de coca, era como se tivesse dormido horas. Com energia suficiente para enfrentar mais um dia.
Elmano era visto como um
bom rapaz, pacato e metido na sua vida, contrariamente aos seus vizinhos,
amigos, colegas de trabalho e, pensava ele, contrariamente a todos, porque no
geral todos são uns metediços, todos não, dizia, porque eu não sou, e basta um
para não se aplicar o quantificador. Trabalhava numa firma de advogados e
exercia a sua profissão há meia dúzia de anos, após haver concluído o curso em
direito. Elmano seguira os passos do pai, também ele, antes de falecer,
advogado. O seu pai fora um dos melhores advogados do país, granjeando fama nos
anos 90 em que fez a defesa de um assassino que havia matado toda a família.
Fora esse caso que levara Elmano a seguir advocacia, mais do que a influência
do pai.
Estava encarregado da
defesa de um caso de roubo de quadros valiosos, cujo arguido, de boas posses,
contratara a firma para o defender. Elmano acreditava no arguido, por tudo que
este lhe havia contado, e por um instinto – e não só. Depois de meses a
acumular provas que inocentariam o arguido e de tanto arguir, hoje era o dia da
sentença final, que, esperava, seria a da absolvição. E, com efeito, assim
sucedeu, o tribunal decidiu em favor do arguido.
Elmano e o inocente, há pouco arguido,
tinham-se dado bem desde a primeira vez que se conheceram, coisas em comum os
ligavam, como sejam o gosto pela literatura, música e coisas afins. Sentira,
desde o primeiro dia, que deveria defender o pobre inocente, que o estava,
sabia o próprio e sabia-o Elmano, e tudo fizera para o defender
escrupulosamente. Empenhou-se todos os dias em trabalhar com afinco para arranjar provas de defesa, posto que o desfecho só poderia ser aquele.
Após abraços, alegrias e
felicitações saiu do tribunal acompanhado do agora inocente, e por assim sê-lo
assim ficará, pois que o autor assim o deseja, e, dizíamos, saía do tribunal
aliviado por mais um caso resolvido, mais uma vitória conseguida, e perguntou ao
inocente se lhe não apetecia ir beber um copo para festejar esta batalha
acabada de ganhar, um uísque sabia-me bem agora, e o inocente anuiu e ambos
foram comemorar, e bem mereciam.
Irish Pub era o nome do
local onde foram beber um copo, vários diga-se com justeza, pois era sítio onde
havia bom uísque, quando duas jovens raparigas se lhes juntaram metendo
conversa, e não se fizeram rogados, conversaram de tudo um pouco, como quem
diz, coisa e tal para aqui, coisa e tal para acolá, e chega-se e são horas de
sair do Pub, e agora onde vamos, perguntou uma das jovens raparigas, ao que
responde Elmano, que tal para minha casa, tenho lá umas garrafas de uísque por
abrir, e porque não, demos uns cheiros de coca, brilharam os olhos das jovens
rapariga, habituadas que estavam a estas coisas da noite, torceu um pouco o
nariz o inocente, não porque não quisesse mas porque se sentia cansado, mas
ganhou a perseverança de Elmano, que não dormindo há uma semana estava aqui
como se tivesse dormido uma.
Já tocados um pouco do
que se bebera, chegaram os quatro à casa de Elmano entre galhofas e apalpões. A
noite prometia, pensara Elmano, que a despeito de gostar estar só com os seus
livros acompanhado de uísque e coca fazia dias que desejava um pouco de
movimento na casa. E movimento houve que chegasse.
O inocente ficou
deslumbrado com a biblioteca que o advogado possuía, metade são meus, outra
metade é do meu falecido pai, dizia Elmano, ao passo que o inocente dizia não
tenho metade da tua metade, mas ainda são alguns, e nisto dissertavam as
raparigas sobre roupas e noites, e esperavam todavia que a verdadeira noite se
concretizasse, pois afinal fora para isso que saíram. Mas ainda tiveram de
esperar, porquanto a conversa tornou-se um pouco mais séria após uns cheiros de
coca e uns goles mais de uísque. Sartre era um plagiador, dizia o inocente após
ter verificado na estante que Elmano possuía o livro O Ser e o Nada, roubou as ideias à Simone, algumas a Hegel e
Husserl, é o que se conta, e era um porco, seja na sujidade, seja
psicologicamente, e, pior ainda, foi um indivíduo que ora estava com o nazismo,
ora se juntou ao comunismo, sabia bem em que lado estar quando lhe convinha,
mas isso hoje, tal como nessa época, parece ter-se esfumado, e vê-se nele o
último intelectual verdadeiramente do século XX, e Elmano retorquia, não sei se
é bem assim, mas seja como for foi um indivíduo que deixou marca, Ora, preferia
morrer a ser um porco sujo plagiador, Não sejas assim, fazem falta Sartres,
fazem falta, Preferia antes mil Kerouacs e todos os que com ele andavam, desde
o Ginsberg ao Burroughs, do que dois mil Sartres, Pois bem, deixa-me que te
diga que esses também eram uns ricos trafulhas, diziam-se contra o sistema,
seja lá o que isso for, apregoavam mil e uma coisa e no entanto pelo menos no que
concerne ao Kerouac acabava por pedir dinheiro à tia, à mãe, enfim, a bota não
batia com a perdigota, são todos uns heróis quando se tem dinheiro para andar
aí na folia a apregoar e reivindicar isto e aqueloutro, ia assim a conversa de
ambos ao passo que as jovens raparigas se contentavam com cheirar coca e
ansiavam que terminasse a conversa sobre aqueles nomes que nunca ouviram falar.
O inocente levantou-se
para ir à casa de banho, Elmano fez mais uns riscos, cheirou e deu a cheirar,
as raparigas aproximaram-se um pouco, uma deu-lhe um beijo na boca, a outra
acariciou-lhe os cabelos, e nisto chegou o inocente, que não fez pela demora e
se juntou à festa, umas mãos aqui, umas línguas ali, e assim se foi
desenrolando o que tanto elas esperavam e procuraram, e não tardou que fossem
oito da manhã, e Elmano, porque já não dormia há uma semana, de repente
sente-se extenuado, encosta-se ao sofá e adormece finalmente.
Passava o ponteiro das
oito da manhã quando Elmano acorda, oito da manhã do dia seguinte, esteve assim
o nosso advogado a dormir vinte e quatro horas, que bem precisava e não
chegavam para colmatar a semana em que não dormiu. Zonzo por muito dormir,
sentiu vontade de urinar, deslocou-se à casa de banho, e quando saca do pénis
para urinar, ou mijar como em bom português, pressente que algo não está bem na
sala, e ainda com pénis a salpicar desloca-se apressadamente para a sala, e eis
quando lá chega não se apercebe do que está mal, embora o pressentimento se
encontra nele ainda, olha em volta, garrafas de uísque por todo o lado, beatas
de cigarros não menos, umas cuecas de mulher no chão perdidas, o livro do
Mailer na mesa juntamente com o do Sartre, e coça a cabeça para pensar melhor
um pouco, e eis que a levanta e olha a parede em frente e aí está o que
procura, o pressentimento que tinha, a falha que encontrou quando se levantou
para ir à casa de banho, o quadro do Lucien Freud lá se não encontra, apenas
uma parede como tantas outras, e olha para a do lado, e também nessa se não
encontra o quadro de Francis Bacon, larga a mão da cabeça, sorri e desloca-se
para o sofá sorrindo ainda, senta-se nele defronte à parede órfã do quadro de Francis Bacon, e com a cara a sorrir adormece novamente.
edit
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