Firmino
sexta-feira, 19 de junho de 2015
Num caso ou no outro, o desfecho era o mesmo. Fora por isso que não tomei decisão alguma (que fosse). O que tivesse de ser, seria.
Eram quatro depois
das quatro quando cheguei finalmente à vila. Quase deserta. O sol batia forte.
Por isso calor. Abrasador. A sede aparecera-me havia algumas horas, após haver
andado trinta quilómetros, estou em crer. De modo que, sem esperar um minuto que
fosse, desloquei-me à tasca donde saíam os únicos ruídos daquela vila
silenciosa.
À entrada, um
cachorro pequeno, pelo preto, olhos grandes a fitar-me; a seu lado, o que
supunha ser seu dono, um fulano de bigode raro, cabelo oleoso, grande e vasto,
de cara magra, cujos olhos mostravam o inferno em pessoa; à minha frente, o
empregado da tasca rindo para a mulher que acabara de lhe pedir uma fresquinha (piscando
olho e passando-lhe as mãos pelas mãos); numa mesa do meu lado direito, três
homens, dois jogando damas, e o outro arbitrando; do meu lado esquerdo, um
homem, uma mulher, outra mulher, outro homem, e mais duas mulheres. Ou seja,
quatro mulheres e dois homens, se ainda consigo somar.
Um copo de água, se
faz favor, pedira eu ao empregado. Fez cara torta, mas lá ma deu. Bebi
sofregamente. Outro por favor. E outro, se não se importar. Todos me olharam
(não os vi, mas pressenti). Sentei-me numa das mesas desocupadas. Foi então que
um dos homens que estavam com as mulheres me dissera: “amigo, vejo que está com
sede. Mas nada melhor que um copinho de vinho para lha matar.” Confesso que só
ouvi matar. E por havê-lo ouvido, sem reflectir que fosse sobre o que se me
dissera, atirei, com uma rapidez que julgara não ter, o copo de água mesmo na
fronha do homem que pouco antes me dissera “matar”. Vidros no chão. Todos a
levantarem-se. O empregado a berrar homem mas que é isso, saia já daqui. As
mulheres em roda aparando o jorro de sangue que lhe saía da cara. O cachorro a
ladrar. O que se julgara dono a acalmá-lo. Os homens das damas a fitarem-me. E
eu, nem em mim, a pensar em tudo aquilo.
Quando dei por mim,
estava na rua.
O sino tocou as
dezasseis e quinze. Não sabia bem para onde me dirigir. O lado direito
vislumbrava-se-me como o melhor. Mas optei pelo esquerdo, contrariando a minha
intuição.
Ontem, por voltas das
vinte horas e trinta e seis minutos e quarenta segundos, iniciei a caminhada que
me levou à tasca mencionada atrás. Saí da minha aldeia definido. Caminharia em
direcção à vila mais próxima, esta que acima resolveu expulsar-me, e lá
definiria a minha vida, ou o que dela esperaria ainda poder ter. Pegada a mochila,
metidas dentro umas coisas que me seriam úteis e me fizessem falta, caminhei
noite dentro sem olhar para trás (bem, na verdade olhei algumas vezes, mas isso
agora não interessa).
Não vos esconderei. É
verdade isso que ouvis. Matei o Jerónimo com uma facada no coração. Já não se matam
homens com facadas no coração (diga-se para que se não esqueça o meu feito e
feitio). Hoje matam-se homens com metralhadoras, pistolas, bombas, bem, essas
cousas todas de guerras hodiernas. Mas eu não. Eu ainda sou antiquado no que
tange a estas cousas de matanças. Foi mesmo de faca. A mesma que na noite
anterior tinha descascado a cebola, cortado, ajudado na destona da maçã,
sobremesa dos dias, etecetera.
Irei contar-vos
porque me sois fieis.
Rezou assim.
Maria Helena sempre
fora uma moça bonita e por isso desejada por todos os homens da aldeia. Quando ainda
criança já todos queriam casar com ela. Filha de Paulo de Sousa Matos, que por
sua vez era filho de João de Sousa Matos, doutor da cidade (doutor o avó, não o
filho. Ou o pai, não o filho. Entenda-se.). Portanto, como vedes, moça de boas
famílias. Educada pelo avô nas letras gregas e latins, mas a cujas línguas
nunca se dedicou com afinco, começara a ajudar o avô nos seus negócios. Pelo que,
não raro era vê-la passear-se pela cidade, ora fazendo recados para o avô, ora mesmo
para tratar de algum negócio que aquele a incumbira.
A sua beleza fazia história,
sabia-se, mesmo nas aldeias perto. Homens de algumas dessas aldeias vinham à nossa
só para a ver. Alguns passavam dias inteiros sentados nos bancos dos jardins esperando
vê-la – mas nem todos tiveram essa sorte, porquanto dias havia que ela não saía
de casa. Esses em que não saía de casa eram passados a ajudar a mãe nas lides
domésticas, pois sofria de doença grave (que não vem para o caso agora).
Maria Helena tem
agora 19 anos. Idade para se casar. Muitos pretendentes foram pedir a mão a seu
pai. A todos este recusara. Foi então que eu, na minha ousadia, mesmo sabendo
de todas as recusas, dei por mim a tentar a minha sorte. Bati na porta de Paulo
de Sousa Matos eram 19:30. Quem me apareceu pela frente fora, sem eu prevenir-me
para o facto, o seu irmão Jerónimo de Sousa Matos. Fiquei sem saber o que
fazer. Havia-me preparado para o seu pai, não para o irmão. Mas este falou, e
eu deixei o pânico. O que me disse não fora diferente do que dissera a muitos
outros, a saber, que estava a perder o meu tempo. Que o seu pai não me iria
aceitar. E pior: que a irmã não se
queria casar comigo. Subiram-se-me os nervos pelo desplante; por não me deixar
sequer entrar, por não deixar sequer falar com o seu pai, e dizer a Maria Helena
que me queria casar com ela. Quando lhe dissera mau grado saber disso mas que
gostaria mesmo assim de falar com o seu pai, Jerónimo saca de uma faca e
lança-se a mim ferozmente. Afasto-me lesto, e ele cai no chão. A faca olha-me. Não
me pergunteis pois eu não vos saberei responder: lembro-me apenas de sacar da
minha, pois mais adequada (o sacana nem a faca soube escolher) e lha espetar no
coração. Assim sem mais e sem mais remorsos. Uma vez. Duas. E três. Três facadas
em pleno coração – para o bandido saber quanto me doeu o meu há pouco.
Assim vedes: foi tal
qual. Fora isto que me levara a sair da aldeia e ir em direcção à vila. E eis-me
aqui. Já escolhi o caminho, porém. Lado esquerdo. Mas escolhi mal. Pois agora
mesmo ao virar da esquina dou de caras com os mandatários do pai de Maria
Helena. Joaquim Vigário, Félix Sousa (primo), Mário Alberto de Sousa Matos (tio
de Helena, irmão de Paulo, pai de Helena, como já vos disse), Cristóvão
Malheiro e por fim Davide Ferreira. Um para cinco. Que poderia eu fazer? Pensei
em todas as possibilidades. Nenhuma delas satisfatória. Quedei-me por ali. O que
tivesse de ser, seria (e tinha muita força. Soía-se dizer.).
edit
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