Guilherme




    Certo dia passei defronte a um café cujas esplanadas estavam repletas de turistas. No meio deles encontrava-se um casal. Uma mulher com cara de anjo. Um homem com cara de demónio. Ambos, porém, filhos de deus – que todos os somos, sói dizer-se, e não é por ter-se cara de diabo que somos filhos deste e não daquele: quando muito, na vida, nos aproximamos do diabo, por destino ou por vocação (o que não deixa de ser irónico, porquanto se somos fruto de deus e ele nos escreve o destino, significa então que eles nos destinou ao seu inimigo de sempre; se por vocação, aplica-se o mesmo. Raio de deus este que nos destina ao seu inimigo!). O Dito fulano com cara de diabo não só tinha cara de diabo como praticava diabruras.
Dias depois de os haver visto, era notícia em todos os jornais que a cara do diabo tinha matado a cara de anjo, numa ruela, à facada. Alegadamente por motivos passionais, assim diziam os jornais, jornalistas e alguns jornaleiros. A opinião pública depressa condenou a cara de diabo. Mais a mais porque tinha cara de diabo, e do diabo não pode vir nunca coisa boa, dizia-se. Alguns jornais escreviam assim:
“HOMEM MATA NAMORADA À FACADA”
“Um homem de 29 anos matou ontem a namorada à facada na rua José Gomes de Castro. Alegadamente, os motivos foram passionais. O homem entregou-se à polícia uma hora depois.
 Segundo apurou o nosso jornal perto dos vizinhos, o casal há já muito que discutia. Uma vizinha disse ao nosso jornal que “a cara de diabo gostava da pinga, talvez estivesse com os copos nessa noite”. Um vizinho, por seu turno, disse que a “cara de anjo traía a cara de diabo”.
O homem será apresentado a tribunal amanhã de manhã para saber a medida de coação.”
Outro jornal escreveu:
“MULHER MORTA À FACADA POR NAMORADO”
“Uma mulher foi morta esta noite, à facada, alegadamente pelo namorado. Consta-se que o que está na origem do brutal assassínio foram motivos passionais. O homem entregou-se à polícia pouco tempo depois de ter assassinado a companheira. Será apresentado amanhã a tribunal.”
Quando nesse dia passei por estas duas pessoas esperava pelos amigos do trabalho a fim de irmos comemorar os anos do Quim Truta, que fazia os seus cinquenta anos.
Conhecia o Quim Truta há já vinte e cinco anos, desde o tempo em que fora trabalhar para o Armazém de Todo o Tipo. O Truta fora desde logo um dos primeiros com quem eu simpatizara. Mais tarde comecei a dar-me com Zé Pulga, depois com o Tó Comércio, e semanas depois dei-me com a Maria do Rosário, a mulher que tratava de tudo que respeitasse a documentação de Todo o Tipo. Em Todo o Tipo fazíamos um pouco de tudo e tratávamos um pouco de Tudo. Tudo era o mais fácil que podíamos fazer. Mas também fazíamos Tudo com o Fazer, que era dos trabalhos mais difíceis, mormente quando se conciliava com o Tudo. Ninguém gostava de ser chamado para Fazer Tudo. Fazer Tudo era extenuante. Quem num dia estivesse escalado para a parte do Fazer Tudo certamente que não só fazia tudo como ainda tinha de tudo fazer. Era um ai dos diabos.
No dia da morte da cara de anjo estivéramos, eu, o Truta e mais o Tó Comércio, na parte do Fazer Tudo. Como erámos amigos há bastantes anos, era o bastante para que o trabalho, mau grado o cansaço, nos corresse pelo melhor; mais ainda, nesse dia, porque sabíamos que à noite iríamos ter festa. O Truta nesse dia não parava de dizer que iria apanhar uma grande piela nessa noite. O Tó só nos falava da Maria do Rosário, com quem há umas semanas andava metido na cama. Eu, enfim, ouvi-os, ria-me e pensava nas horas que faltavam para sairmos do trabalho. Quando finalmente chegou a hora de sairmos, o meu alívio era do tamanho da piela que o Truta viria a ter. Marcáramos para nos encontrar dali a uma hora na rua João Andrade Pires de Caramelo, paralela à rua José Gomes de Castro, onde, como vos disse, sucedeu o fatídico sucedido.
Eram vinte para as nove quando cheguei à rua Caramelo. O Truta ainda não tinha vindo. O Tó fazia horas para não chegar ao mesmo tempo da Rosário, pois a despeito de nós sabermos, não sabia ela que nós sabíamos. Estava então eu na espera. Telefonei ao Truta, disse-me que demorava uns vinte minutos, telefonei ao Tó, disse-me que demoraria trinta minutos. E não telefonei à Rosário, porque certamente com o Tó. Pois então decidi que o melhor era ir beber um copo, talvez um porto, talvez um uísque, talvez o que calhasse, logo se veria, se não fosse mais. Pensei e fiz, que o mais difícil não é fazer mas pensar. Tinha sabido pelo Marrecos que o novo café que abrira na Gomes Castro tinha umas pingas boas, que o melhor era provar para ver do que falo, dizia-me o Marrecos, uma pinga dos diabos, daquelas que te põe a achar que a lua é uma fatia de queijo, disse-me ele com o estilo que era sua prática.
Estava eu a pedir uma das pingas com os diabos, e que diabo era, o Truta telefona-me a dizer que já estava na Caramelo. Bebi-a, fechando os olhos, de uma só golada. Ardeu-me a goela, e o corpo estremeceu todo por dentro enquanto por fora arrepiava, e não era do frio. Saí de rompante a fim de ir ter com o Truta. Pelo caminho, que não eram mais que uns 800 metros, a noite já tinha nascido, a lua era já queijo, a iluminação era opaca, os carros andavam sem se mexer, e os que se mexiam estavam parados, as minhas pernas estavam com uma força descomunal e todavia custava-me andar. A custo, cheguei ao Truta, que me esperava há já uns dez minutos. Perguntou-me onde tinha ido, porque antes quando me telefonara não houvera oportunidade de dizer onde estava. A pergunta, porém, entrou no ouvido direito e não saiu pelo esquerdo, como é hábito fazer, mas instalou-se no canto mais pequeno do cérebro, talvez da mente, se nela acreditamos, e ali ficou por vários dias sem eu saber como a expulsar. Pois estava eu a haver-me com a pergunta no cantinho do cérebro quando o Tó chegou, seguido minutos depois a Rosário. Ambos perguntaram-me se esperava há muito, mas tal como a anterior, foi parar ao canto do cérebro, mas desta vez ao outro canto. De modo que, tinha dois cantos do cérebro com duas perguntas. Quando se tem perguntas no cérebro o melhor é responder-lhes. Eu porém não lhes conseguia responder. Mantiveram-se ali por vários e variados dias (ainda hoje as penso ali).
Fomos os quatro à tasca do senhor Julião, onde erámos habituais clientes e onde a comida tinha o sabor a comida, quer dizer, era daquelas comidas que saboreamos à primeira garfada e não queremos parar à última. E com efeito assim o foi nessa noite, como de resto o era sempre. Uma garfada e o Truta come tudo, que hoje pago eu, outra garfada e o Tó eu só quero é apanhar uma grande piela, outra garfada, e a Rosário não espero pela hora de estar em casa, isto não o disse, pensou-o apenas, outra garfada e eu não sei quem sou nem onde estou, nem quem são estes que ora se riem para mim, isto pensei eu falando todavia que a comida era boa (conseguia fazer estas duas coisas que praticamente são impossíveis, quais sejam, falar uma coisa e estar a pensar noutra).
Atalho agora para que vos não percais no relato. Pois seja então. O Truta dissera-nos que depois de jantarmos tínhamos de ir à tasca onde se bebia umas bebidas dos diabos, porquanto o Marrecos lhe dissera que a bebida era boa como presunto com pão acompanhado de vinho tinto. A comparação era do Marrecos, que como sabeis já, dizia as coisas com estilo, pois era da sua prática. Ouvi o Truta, mas não lhe disse que já lá estivera. O Tó acenou que sim senhor iríamos lá beber a bebida dos diabos, a Rosário também, não é Rosário, esta não respondeu visto que apenas pensava na sua cama, mas como o Tó queria ir, ela não diria que não.
Pagámos a jantarada e deslocámo-nos à tasca com bebidas dos diabos. Pelo meio os carros que andavam continuavam parados, os parados a andar, a lua estava como queijo ainda, a iluminação opaca, a força das minhas pernas era descomunal e contudo arrastava-me a custo, tanto custo que o pouco mais de um quilómetro pareceu-me a eternidade da morte. Eis-nos então na tasca com bebidas dos diabos. O senhor das bebidas dos diabos ainda lá estava, não podia ser de outro modo. Olhou-me e pareceu-me não reconhecer. O Truta pediu as bebidas, o Tó sentou-se, a Rosário foi à casa de banho, e eu mantive-me de pé, pois o meu corpo enrijecera e não se queria sentar, por paradoxal que vos possa parecer. Quando a Rosário chegou, o Tó propusera bebermos a bebida dos diabos de uma assentada. E assentado bebi a bebida de uma assentada. Outra, dizia o Truta. E outra de assentada. E outra, dizia o Tó. A Rosário calou-se, embora pouco tivesse falado. O Truta falava ininterruptamente. O Tó tagarelava ininterruptamente. Eu não sabia se falava, se estava calado. O meu cérebro não processava nada. A Rosário calada. Quando nos levantámos, o meu corpo estava tão pesado que era uma tonelada de sentimentos inexplicáveis. O Truta saiu pela porta fora e não disse nada a ninguém. O Tó saiu e deixou a Rosário dependurada. A Rosário saiu e não pensou no Tó. Eu saí e não pensei em nada.
Quando estou na rua, já o Truta, o Tó e a Rosário não se viam. O Truta arremeteu pela Gomes Castro. O Tó apressou-me pela Dr. Costas, que cortava a meio a Gomes Castro. A Rosário foi pela Gomes Castro. Eu não sei bem por onde fui, apenas que cheguei a casa. Tinha a roupa encharcada em sangue. Deitei-me no sofá e adormeci. De manhã pus a roupa para lavar. O Truta telefona-me apavorado tenho a roupa com sangue, sabes de alguma coisa. Não, disse eu. O Tó bate-me à porta e mostra-me a roupa dele, também com sangue, e pergunta-me o mesmo que o Truta, não, não sabia. A Rosário não apareceu nem telefonou.
O cara de diabo foi condenado a quinze anos de prisão. Escrevem os jornais:
“HOMEM QUE MATOU NAMORADA À FACADA LEVA 15 ANOS DE PRISÃO.”
“Homem leva 15 anos de prisão.
“Foi há um ano que Pedro Costas matou a namorada à facada na rua Gomes Castro. O homicida declarou-se culpado pelo assassínio da namorada. Esta fora morta com 39 facadas em todo corpo, tendo 27 delas sido na cabeça. O acto chocou a comunidade da cidade, que ainda hoje não sabe o que terá passado pela cabeça do homicida.”

Ao senhor das bebidas dos diabos continua-lhe a correr bem o negócio. 
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