Hermínio





São quatro horas e Hermínio aterra na bomba de gasolina contígua à sua casa. Por pouco não tinha gasolina suficiente para levar o carro até casa. Há uma hora que vinha em viagem, e há trinta minutos que sabia que a gasolina estava nas últimas. Porém não houve uma bomba de gasolina onde pudesse abastecer. Mas correu tudo bem: chegou à bomba perto de casa e daqui a minutos entrará nela. Depressa estacionará o carro na garagem, subirá as escadas que o levam ao repouso de anos, fará uma salada para enganar o estômago, beberá um uísque deitando-se no sofá e fumará uma cigarrilha. Depois adormecerá como se não tivesse dormido há dias, sonhará com a Isabel, uma e duas vezes, e perto de acordar tornará a sonhar com ela, e, finalmente, acordará e será de manhã. Outro dia.
Quando às vinte e uma Isabel telefonou, Hermínio estava no trabalho. Trabalhava no call center, que é o trabalho dos dias de hoje e do futuro, e fora o único que até hoje teve. Não ganhava mal, apesar da precaridade: chegava-lhe, e por vezes sobrava-lhe, para os gastos, que não eram muitos. O uísque era o que lhe levava o dinheiro (e a saúde também, dizia-lhe Isabel amiúde). Hermínio, preciso que venhas a minha casa rapidamente. Já vou, respondeu. Sempre que era solicitado por Isabel não olhava a meios para lhe responder às necessidades, fossem elas quais fossem. Neste dia, porém, ela não se alongou na urgência. Se urgência se tratava. Pelo caminho pensou diversas vezes o motivo por que Isabel lhe telefonara. Das vezes em que sucedeu, e não foram poucas, Isabel informava-o sempre de que se tratava. Desta, porém, não adiantou nada. A única coisa que sabia era que a voz dela suspirava medo, que lhe sentiu a voz trémula, mais uns ruídos de fundo impercetíveis. Arrancou com a força que o Fiat Punto podia e dirigiu-se a casa dela.
A noite tinha já ido e os raios do sol entravam pela janela do quarto, quando Hermínio se levantou. Primeira coisa: sentar-se no sofá e fumar um cigarro. Considerava um dos maiores prazeres do seu dia. Depois o habitual: tomar banho, o pequeno-almoço enquanto vê as primeiras notícias do dia, buscar o jornal que o ardina habitualmente lhe deixa, ler na diagonal que o “governo pretende aumentar impostos”, e que determinado “homem mata mulher e filha”, sem esquecer o “agente preso por tráfico de droga”, ou ainda aquela que nos provoca risos matinais à guisa de receita diária para ultrapassar as dores quotidianas, como esta que aqui vai escrita, a saber, “ministro da economia diz que a economia para o próximo ano vai crescer 7%”, e ri-se Hermínio, sem contudo deixar de pensar que os governantes são bons comediantes, muito menos entender como pode o aumento de impostos resultar numa melhoria da economia. Pensou isto, mas já deixou para trás, pois agora é hora de sair. Olhou os post-it que estavam no frigorífico, onde tinha escrupulosamente todas as atividades para realizar, saiu (finalmente).
Isabel estava já, desesperada, na porta de casa à espera de Hermínio, quando o viu a chegar. Este saiu com pressa e dirigiu-se-lhe perguntando o que se passava, reparando nas lágrimas que escorriam pela cara dela. Com efeito, chorava e demonstrava uma cara de preocupação como nunca antes lhe vira. Que se passa, perguntou. Ela nada respondeu, limitando-se a abraçá-lo com tremenda força que quase lhe partia uma costela. Como nada dissesse, ele insistiu na pergunta, mas uma vez mais não obteve resposta. Não vim aqui para nada, Isabel, diz-me lá o que se passa, é que deixei o trabalho para vir ter contigo. A custo, a soluço, Isabel lá iniciou a contar.
José Maria era o chefe tresloucado de Hermínio. Conheceram-se desde que Hermínio fora para lá trabalhar e desde então são amigos. Partilham não só a amizade mas também a loucura. Onde um está, está o outro. Mas nem um nem outro são a cara e o cu do outro. Cada qual com a sua parte que lhes corresponde, é o que revidam quando alguém mais afoito insinua-lhes a putativa homossexualidade. Com efeito, e em abono da verdade para que as dúvidas não se instalem, nem um nem outro são maricas. Se alguma coisa de maricadas têm deve-se mais à cobardia do que à mariquice. José Maria tinha apresentado Isabel a Hermínio há uns meses no café do Manuel da Elvira. O primeiro morria de amores por ela, mas nunca foi correspondido. Hermínio simpatizou com ela, mas não lhe caiu os amores. A partir desse dia, porém, Hermínio e Isabel começaram a sair. Não raro se encontravam ora na casa dela, ora na dele, mas as mais das vezes no café do Gusmão, a quem muita gente confiava os seus segredos mercê da sensibilidade que denotava. Hermínio via nela um travesseiro, à falta de melhor vocábulo e metáfora; Isabel via nele uma boa cama. Portanto, ele apoiava-se nela, ela dormia nele.
Segundo constava no post-it de Hermínio:
1 – Passar nos pais às 10;
2 – Ir à livraria buscar o livro encomendado há uma semana;
3 – Buscar os panados à Tia Carla;
4 – Pagar as contas da luz e tv cabo, quando de regresso na caixa de multibanco perto da estação dos comboios;
5 – Depois do almoço ir tomar café com o António;
6 – Telefonar, sem falta, à Maria João dando-lhe os parabéns.
7 – Tirando o ponto 5, tudo o resto pode ser noutra ordem.
8 – Ir às 20 horas à casa da Isabel.
O melhor que temos a fazer, Isabel, é arrumar tudo. Limpar tudo muito limpo. Tens lixivia? Claro que tens. Vai buscar um pano e um balde de água. Isabel procedeu de seguida. Deixa-te de choros agora. Não temos tempo a perder, caso contrário quem perde és tu. Começa por esse lado, que eu começo por este. Passa o pano sempre na lixivia antes de esfregares, ok? No que te metes, rapariga. Que raio te deu para fazeres este disparate de todo tamanho. Não, não precisas explicar, é que nem explicação há para o que fizeste. Esperemos que ninguém tenha ouvido, senão estás completamente fodida. Sabes, não sabes? Sim, sim, mesmo que os vizinhos não estejam, há sempre alguém que vê. As paredes, mesmo sem ninguém em casa, veem sempre. Não, não é deixa-te de coisas, Hermínio. Sabes bem que o tempo corre. E corre desde que o mundo é mundo. Ou desde que o universo é universo. Depois de limparmos isto, levo-te a casa dos teus pais, e eu vou para casa. Ficas lá até sabermos alguma coisa, ok? Não fales com ninguém. Ah, telefonaste a mais alguém? Pois claro, fizeste bem. Foi melhor assim. Arruma o livro. Melhor, pelo caminho chegamos-lhe o lume. Talvez ali no monte dos Picos.
Eram exatamente dez horas da manhã quando Hermínio chegou a casa dos pais. A casa destes situava-se a três quarteirões. A mãe estava a estender a roupa que havia acabado de lavar, quando Hermínio disse olá mãe. O pai, por seu turno, estava em volta do carro, que havia dias lhe dava problemas. Deu um beijo à mãe, um beijo ao pai, como estão, como vão as coisas aqui por casa, como está a Mia, como está o Pulgas, a Ana tem passado aqui, ontem via no centro comercial com o João. Beijaram-se e despediram-se. (Por palavras de circunstâncias que sejam, por pouco que sejam os minutos, os pais sempre gostam da visita dos filhos.) Passarei, sim, mãe, disse Hermínio, referindo-se à passagem pela casa da Tia Carla que lhe tinha os panados prontos. Às 14:21 encontrou-se com o António para o café habitual (antes pagou as contas). Às 14:45 foi buscar o livro. Tratava-se de um livro sobre uma mulher com a síndrome dos nomes próprios. Uma doença rara que consistia na obsessão pelos nomes próprios e que, quando levada ao extremo, podia levar os doentes a cometer as mais variadas loucuras. Tanto quando se sabe, ainda não há cura para tal doença, e diz a melhor medicina que não se espera venha a haver.
Eram 19:58 quando Hermínio se encontrou com Isabel.
Quando pararam no monte dos Picos para chegar lume ao livro, Isabel tremia como se saída das águas da Antártida. Hermínio dissera-lhe para se acalmar, pois era o melhor a fazer e de nada adiantava estar assim. Isabel, contudo, não se acalmava. No íntimo, saberia que nunca mais teria calma na sua vida. A vida não seria mais a mesma desde essa noite. Que iria dizer aos pais? Que farei de ora em diante? Como explicar que nunca mais poderei voltar a casa? Que vai ser de mim? E pior ainda, e se descobrem? Estas e outras dúvidas assomavam-se-lhe à cabeça com a força de uma avalanche.
Olá, sou eu, abre, disse Hermínio. Como estás, com saudades minhas? Algumas, disse Isabel com um sorriso nos lábios. Beijaram-se. Fiz entrecosto, vais gostar. Espero que sim, pelo menos costumo gostar. Queres que vá buscar vinho? Não é preciso, tenho aqui um tinto que comprei ontem. Ah, ok, melhor então. Senta-te um pouco enquanto termino, sim? Sim, aproveito e vou ler este livro que fui comprar há bocado. Isso mesmo, faz isso.
Passavam trinta minutos das duas quando Hermínio deixou Isabel na casa dos seus pais. Na despedida disse-lhe, novamente, para se acalmar, porquanto tudo iria correr bem. Não penses nisso, toma algo para dormires. Vou ver se os meus pais têm algum medicamento para dormir. Faz isso, sim. Vai com calma, sim, disse ela a Hermínio. Este arrancou em direção a sua casa.

Isabel estava com um vestido preto, curto, quando terminava de cozinhar o entrecosto. Hermínio lia o livro e de quando em vez dava uma espreitadela para a cozinha para lhe ver a silhueta. Conhecia-a bem, mas nunca deixara de a admirar. Isabel era de facto muito bem-feita. E isso agradava-lhe sobremaneira. Como a vontade não parasse, levantou-se e foi à cozinha ter com ela, e ato contínuo estavam ambos no quarto. Beijaram-se, passearam as mãos no corpo um do outro, trocaram o que havia de ser trocado. Quando Hermínio estava no clímax, lembrou-se que não havia cumprido todo o post-it que havia preparado escrupulosamente para esse dia, e nesse momento de recordação exclama Maria João. Isabel parou, olhou-o. Hermínio pensou: esta não constava no meu post-it. 
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