Hermínio
sábado, 17 de outubro de 2015
São quatro horas e Hermínio aterra na bomba de gasolina contígua à sua casa. Por pouco não tinha gasolina suficiente para levar o carro até casa. Há uma hora que vinha em viagem, e há trinta minutos que sabia que a gasolina estava nas últimas. Porém não houve uma bomba de gasolina onde pudesse abastecer. Mas correu tudo bem: chegou à bomba perto de casa e daqui a minutos entrará nela. Depressa estacionará o carro na garagem, subirá as escadas que o levam ao repouso de anos, fará uma salada para enganar o estômago, beberá um uísque deitando-se no sofá e fumará uma cigarrilha. Depois adormecerá como se não tivesse dormido há dias, sonhará com a Isabel, uma e duas vezes, e perto de acordar tornará a sonhar com ela, e, finalmente, acordará e será de manhã. Outro dia.
Quando às vinte e uma
Isabel telefonou, Hermínio estava no trabalho. Trabalhava no call center, que é o trabalho dos dias
de hoje e do futuro, e fora o único que até hoje teve. Não ganhava mal, apesar
da precaridade: chegava-lhe, e por vezes sobrava-lhe, para os gastos, que não
eram muitos. O uísque era o que lhe levava o dinheiro (e a saúde também,
dizia-lhe Isabel amiúde). Hermínio, preciso que venhas a minha casa
rapidamente. Já vou, respondeu. Sempre que era solicitado por Isabel não olhava
a meios para lhe responder às necessidades, fossem elas quais fossem. Neste
dia, porém, ela não se alongou na urgência. Se urgência se tratava. Pelo
caminho pensou diversas vezes o motivo por que Isabel lhe telefonara. Das vezes
em que sucedeu, e não foram poucas, Isabel informava-o sempre de que se
tratava. Desta, porém, não adiantou nada. A única coisa que sabia era que a voz
dela suspirava medo, que lhe sentiu a voz trémula, mais uns ruídos de fundo
impercetíveis. Arrancou com a força que o Fiat Punto podia e dirigiu-se a casa
dela.
A noite tinha já ido
e os raios do sol entravam pela janela do quarto, quando Hermínio se levantou.
Primeira coisa: sentar-se no sofá e fumar um cigarro. Considerava um dos
maiores prazeres do seu dia. Depois o habitual: tomar banho, o pequeno-almoço
enquanto vê as primeiras notícias do dia, buscar o jornal que o ardina habitualmente
lhe deixa, ler na diagonal que o “governo pretende aumentar impostos”, e que
determinado “homem mata mulher e filha”, sem esquecer o “agente preso por tráfico
de droga”, ou ainda aquela que nos provoca risos matinais à guisa de receita
diária para ultrapassar as dores quotidianas, como esta que aqui vai escrita, a
saber, “ministro da economia diz que a economia para o próximo ano vai crescer
7%”, e ri-se Hermínio, sem contudo deixar de pensar que os governantes são bons
comediantes, muito menos entender como pode o aumento de impostos resultar numa
melhoria da economia. Pensou isto, mas já deixou para trás, pois agora é hora
de sair. Olhou os post-it que estavam
no frigorífico, onde tinha escrupulosamente todas as atividades para realizar,
saiu (finalmente).
Isabel estava já,
desesperada, na porta de casa à espera de Hermínio, quando o viu a chegar. Este
saiu com pressa e dirigiu-se-lhe perguntando o que se passava, reparando nas
lágrimas que escorriam pela cara dela. Com efeito, chorava e demonstrava uma
cara de preocupação como nunca antes lhe vira. Que se passa, perguntou. Ela
nada respondeu, limitando-se a abraçá-lo com tremenda força que quase lhe partia
uma costela. Como nada dissesse, ele insistiu na pergunta, mas uma vez mais não
obteve resposta. Não vim aqui para nada, Isabel, diz-me lá o que se passa, é
que deixei o trabalho para vir ter contigo. A custo, a soluço, Isabel lá
iniciou a contar.
José Maria era o
chefe tresloucado de Hermínio. Conheceram-se desde que Hermínio fora para lá
trabalhar e desde então são amigos. Partilham não só a amizade mas também a
loucura. Onde um está, está o outro. Mas nem um nem outro são a cara e o cu do
outro. Cada qual com a sua parte que lhes corresponde, é o que revidam quando
alguém mais afoito insinua-lhes a putativa homossexualidade. Com efeito, e em
abono da verdade para que as dúvidas não se instalem, nem um nem outro são
maricas. Se alguma coisa de maricadas têm deve-se mais à cobardia do que à
mariquice. José Maria tinha apresentado Isabel a Hermínio há uns meses no café
do Manuel da Elvira. O primeiro morria de amores por ela, mas nunca foi
correspondido. Hermínio simpatizou com ela, mas não lhe caiu os amores. A
partir desse dia, porém, Hermínio e Isabel começaram a sair. Não raro se
encontravam ora na casa dela, ora na dele, mas as mais das vezes no café do
Gusmão, a quem muita gente confiava os seus segredos mercê da sensibilidade que
denotava. Hermínio via nela um travesseiro, à falta de melhor vocábulo e
metáfora; Isabel via nele uma boa cama. Portanto, ele apoiava-se nela, ela
dormia nele.
Segundo constava no
post-it de Hermínio:
1 – Passar nos pais
às 10;
2 – Ir à livraria
buscar o livro encomendado há uma semana;
3 – Buscar os panados
à Tia Carla;
4 – Pagar as contas
da luz e tv cabo, quando de regresso na caixa de multibanco perto da estação
dos comboios;
5 – Depois do almoço
ir tomar café com o António;
6 – Telefonar, sem
falta, à Maria João dando-lhe os parabéns.
7 – Tirando o ponto
5, tudo o resto pode ser noutra ordem.
8 – Ir às 20 horas à
casa da Isabel.
O melhor que temos a
fazer, Isabel, é arrumar tudo. Limpar tudo muito limpo. Tens lixivia? Claro que
tens. Vai buscar um pano e um balde de água. Isabel procedeu de seguida.
Deixa-te de choros agora. Não temos tempo a perder, caso contrário quem perde és
tu. Começa por esse lado, que eu começo por este. Passa o pano sempre na
lixivia antes de esfregares, ok? No que te metes, rapariga. Que raio te deu
para fazeres este disparate de todo tamanho. Não, não precisas explicar, é que
nem explicação há para o que fizeste. Esperemos que ninguém tenha ouvido, senão
estás completamente fodida. Sabes, não sabes? Sim, sim, mesmo que os vizinhos
não estejam, há sempre alguém que vê. As paredes, mesmo sem ninguém em casa,
veem sempre. Não, não é deixa-te de coisas, Hermínio. Sabes bem que o tempo
corre. E corre desde que o mundo é mundo. Ou desde que o universo é universo.
Depois de limparmos isto, levo-te a casa dos teus pais, e eu vou para casa.
Ficas lá até sabermos alguma coisa, ok? Não fales com ninguém. Ah, telefonaste
a mais alguém? Pois claro, fizeste bem. Foi melhor assim. Arruma o livro.
Melhor, pelo caminho chegamos-lhe o lume. Talvez ali no monte dos Picos.
Eram exatamente dez
horas da manhã quando Hermínio chegou a casa dos pais. A casa destes situava-se
a três quarteirões. A mãe estava a estender a roupa que havia acabado de lavar,
quando Hermínio disse olá mãe. O pai, por seu turno, estava em volta do carro,
que havia dias lhe dava problemas. Deu um beijo à mãe, um beijo ao pai, como
estão, como vão as coisas aqui por casa, como está a Mia, como está o Pulgas, a
Ana tem passado aqui, ontem via no centro comercial com o João. Beijaram-se e
despediram-se. (Por palavras de circunstâncias que sejam, por pouco que sejam
os minutos, os pais sempre gostam da visita dos filhos.) Passarei, sim, mãe,
disse Hermínio, referindo-se à passagem pela casa da Tia Carla que lhe tinha os
panados prontos. Às 14:21 encontrou-se com o António para o café habitual
(antes pagou as contas). Às 14:45 foi buscar o livro. Tratava-se de um livro
sobre uma mulher com a síndrome dos nomes próprios. Uma doença rara que
consistia na obsessão pelos nomes próprios e que, quando levada ao extremo,
podia levar os doentes a cometer as mais variadas loucuras. Tanto quando se
sabe, ainda não há cura para tal doença, e diz a melhor medicina que não se
espera venha a haver.
Eram 19:58 quando
Hermínio se encontrou com Isabel.
Quando pararam no
monte dos Picos para chegar lume ao livro, Isabel tremia como se saída das
águas da Antártida. Hermínio dissera-lhe para se acalmar, pois era o melhor a
fazer e de nada adiantava estar assim. Isabel, contudo, não se acalmava. No
íntimo, saberia que nunca mais teria calma na sua vida. A vida não seria mais a
mesma desde essa noite. Que iria dizer aos pais? Que farei de ora em diante?
Como explicar que nunca mais poderei voltar a casa? Que vai ser de mim? E pior ainda,
e se descobrem? Estas e outras dúvidas assomavam-se-lhe à cabeça com a força de
uma avalanche.
Olá, sou eu, abre,
disse Hermínio. Como estás, com saudades minhas? Algumas, disse Isabel com um
sorriso nos lábios. Beijaram-se. Fiz entrecosto, vais gostar. Espero que sim,
pelo menos costumo gostar. Queres que vá buscar vinho? Não é preciso, tenho
aqui um tinto que comprei ontem. Ah, ok, melhor então. Senta-te um pouco
enquanto termino, sim? Sim, aproveito e vou ler este livro que fui comprar há
bocado. Isso mesmo, faz isso.
Passavam trinta
minutos das duas quando Hermínio deixou Isabel na casa dos seus pais. Na
despedida disse-lhe, novamente, para se acalmar, porquanto tudo iria correr
bem. Não penses nisso, toma algo para dormires. Vou ver se os meus pais têm
algum medicamento para dormir. Faz isso, sim. Vai com calma, sim, disse ela a
Hermínio. Este arrancou em direção a sua casa.
Isabel estava com um
vestido preto, curto, quando terminava de cozinhar o entrecosto. Hermínio lia o
livro e de quando em vez dava uma espreitadela para a cozinha para lhe ver a
silhueta. Conhecia-a bem, mas nunca deixara de a admirar. Isabel era de facto
muito bem-feita. E isso agradava-lhe sobremaneira. Como a vontade não parasse,
levantou-se e foi à cozinha ter com ela, e ato contínuo estavam ambos no
quarto. Beijaram-se, passearam as mãos no corpo um do outro, trocaram o que
havia de ser trocado. Quando Hermínio estava no clímax, lembrou-se que não
havia cumprido todo o post-it que havia preparado escrupulosamente para esse
dia, e nesse momento de recordação exclama Maria João. Isabel parou, olhou-o.
Hermínio pensou: esta não constava no meu post-it.
edit
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