Isidoro
terça-feira, 20 de outubro de 2015
Talvez fossem cinco da manhã, talvez seis, o sol começava a sobrepor-se à lua espreitando o dia, iluminando a noite, ou manhã, o homem aparecera na esquina, cambaleando e com olhos de dormir, vestido de calças pretas e camisa azul-escuro amarrotada, ténis sujos, quase rotos na parte da frente, tonto, como quem, e com efeito assim foi, é acordado por um estrondo longínquo mas assaz percetível, estremunhado. A cara traduzia desconhecimento, pois olhava a rua que se lhe deparara defronte e toda ela era calma. Nem um ruído que seja. Nem um roncar de um carro, nem uma porta a abrir-se ou fechar-se, nem o som estrepitoso do metro, tão-pouco o roncar das chaminés das fábricas, e claro está, nem um som do falar de uma pessoa.
Percorreu a rua acima
perscrutando o lado direito, o esquerdo, a frente e o atrás, até a diagonal. Só
ouvia o silêncio, se o silêncio se pôde alguma vez ouvir. Quando chegou ao fim
da rua, já o sol a iluminava. Era um sol lindo, como sempre o foi e é.
Estremunhado antes, atónito ainda, teve o condão da claridade solar haver-lhe
conferido alguma felicidade, mas ainda não alguma lucidez, porquanto havia
percorrido trezentos metros, que era a distância da rua que havia corrido, e a
inteligência lhe não explicara o porquê do silêncio, tampouco do deserto. Para
quem acordara há pouco, e não se sabe há quanto estaria a dormir, o estômago
pedia comida. Não só o estômago, mas igualmente a fraqueza do corpo lho exigia.
Talvez seja a fome que me está a fazer alucinar, dissera para si, pois não o
podia dizer a mais ninguém, sozinho estava. Destarte, antes de tudo o mais,
precisava de se alimentar.
Neste ínterim, seja
porque percorreu os trezentos metros lentamente, seja porque pensou na possível
alucinação, o sol irradiava já um outro dia como sempre o fizera desde o seu
nascimento, o homem empreendeu a busca por comida a fim de saciar a necessidade
do corpo e da natureza. Fosse porque a cidade era grande, fosse por mero acaso,
não tardou a encontrar uma superfície onde comida havia para satisfazer a fome
e o corpo. Mais difícil, por espanto, seria escolher o que comer, pois se é
certo que quando se tem fome qualquer estômago esquisito come o que lhe
aparece, não menos o é que quando se tem fome e a comida abunda o mais difícil
é escolher o que comer. E com efeito assim sucedeu com o homem que aparecera há
bocado na esquina. Decidir entre comer algo doce ou algo salgado era tarefa que
lhe não aprouvera de todo. Uma lata de salsicha, uma lata de atum, chouriço,
batatas fritas, ou bolos, iogurtes, cereais, que talvez dado ser de manhã
seriam os mais convenientes, enfim, tudo aquilo que se possa imaginar num
supermercado. De entre toda a gama de produtos alimentícios escolhera o homem,
e bem o entendemos, comer um pouco de tudo. Então, procurou por pão, ei-lo
aqui, um pouco ressesso porém, o que o fez pensar por momentos que teria
dormido mais do que dois dias pelo menos, mas pensou e logo deixou ir o pensamento
visto a fome ser muita, sacou de uma lata de salsichas, chouriço, buscou
batatas fritas, presunto, que ainda o não tinha visto e gostava sobremaneira, e
quando tudo isto estava na sua frente pensou que uma cerveja lhe cairia bem,
apesar de ser de manhã cedo, e eis então que foi procurar cerveja, aqui está
ela, ou elas, pois levou mais do que uma. Abriu a garrafa de cerveja com os
dentes, já as sandes de presunto, chouriço e salsichas estavam prontas,
amarrou-se com os dentes que tinha a elas e deu uma trinca tão grande quanto a
fome que tinha, o que originou o embrulhar-se da comida pela goela abaixo que o
fez por pouco deixar de respirar, salvou-o a cerveja, que depressa amandou a
comida para o estômago. Comendo agora mais devagar, saboreando a comida, olhava
o supermercado com tristeza, que nem o saciar da fome lhe logrou alguma
felicidade. Perguntava-se onde estaria toda a gente, porquê o deserto, que se
teria passado, seria na cidade ou no mundo, de onde vim e porque dormi tanto,
para onde vou e fazer o quê. Abriu mais uma cerveja, fez mais umas sandes,
comeu fruta e iogurtes no fim. Não sendo comida cozinhada, era como se o
tivesse sido. Abriu mais uma cerveja, e depois outra, e quando ia abrir outra
adormeceu como um gato.
A manhã havia
passado, a tarde entrara já há uma hora, quando acordou. Doía-lhe a cabeça. A
custo lembrou-se como fora ali parar e do deserto e do silêncio da manhã. E se
antes se havia assustado mas ainda esperançado que não fosse nada mais do que
gazeta da população, quer dizer, no entendimento do homem, a população por
razão desconhecida ter-se-ia deixado ficar a dormir ou ter-se-ia deslocado para
a cidade próxima, agora e após ter-se recobrado, o pânico franzia-lhe o
estômago apavorado de não saber o que fazer, como fazer, aonde ir, por onde
começar, e mais, porquê a mim. Como porém ficar parado é morrer, conquanto o
sucedido a ele mesmo o contraria, decidiu-se por ir à procura de alguém que lhe
explicasse o que estava sucedendo. Saiu pois do supermercado, que de ora em
diante seria o local de referência, até porque tinha comida de sobejo, virou ao
lado direito, porquanto no esquerdo fora de onde viera, e desceu a rua
caminhando lento, perscrutante e escrupulosamente a fim de não deixar de reter
fosse o que fosse que lhe pudesse mostrar vida. Vida, porém, não encontrou
nesta rua. Muito menos na seguinte. Menos ainda na seguinte da seguinte. E
ainda da seguinte da seguinte da seguinte. E seguintes assim foram seguindo-se
uns aos outros hoje, amanhã, depois de amanhã, semana a semana, mês a mês até
que por fim deixou de buscar vida onde de facto vida não havia.
Mas não adiantemos a
história deste homem que se nos apareceu por mero acaso, como mero acaso parece
ser a vida deste homem.
No terceiro
quarteirão entrou o homem num prédio, cuja porta se achava aberta. Passa
primeiro pelo primeiro apartamento. Sozinho, o apartamento parece inabitável.
Mais do que isso, parecia sequer não ter vestígios de vida. Mas isto de não ter
vida talvez fosse mero acaso, como acaso nos parece tudo isto que temos vindo
relatando. Tudo nele, no apartamento, parece conforme. Tem uma sala com sofás,
televisão, mobília, estante com alguns livros. No quarto, há a habitual cama,
guarda-vestidos, ou guarda-fatos, mesinha de cabeceira. Porém uma coisa reparou
homem que não havia em toda a casa: fotografias. Roupa, havia, alguma. Toda a
casa parecia ter sido habitada, mas mais pela conformidade dos objetos nela do
que por vestígios de vida, ainda que vestígios sejam a roupa, a mobília, porém
pareciam-lhe ter sido postos na casa sem alguma vez haver intenção de ser
habitada. No apartamento seguinte o igual era parecido. No seguinte, a mesma
coisa. Até ao último apartamento o igual subsistiu. Deslocou-se ao terraço do
cimo do prédio. O sol, o a única coisa que parecia ter vida nesta vida de morte
que era a deste homem, brilhava intensamente lá longe mirando o homem com tenaz
curiosidade. Sentou-se. Sacou de um cigarro que trouxera do supermercado,
acendei-o e fumou-o lentamente. Nisto pensou no que fazer. Já antes experimentara
os telefones, mas debalde: não funcionavam. Ligou a televisão no quarto andar,
mas em vão: não funcionava. Vasculhou ainda toda a mobília em busca de um
bilhete, alguma coisa escrita que tivesse sido deixada para trás a informar
quem para trás ficou o que ter-se-ia passado, mas em vão: nada. Pensava nisto
quando fitava a cidade do cimo do prédio e a paisagem era normal como qualquer
normal paisagem vista do cima de um prédio, tirante e tirando, claro está, o
facto de não ter vida nem nas ruas nem nas casas.
Desceu ao primeiro
apartamento, onde antes vira a estante dos livros. Pegou num livro ao acaso
para o levar consigo. Saiu. Caminhou em direção à rua paralela, onde ainda não
tinha estado. Pelo caminho reparou naquilo que antes não havia tomado atenção,
a saber, que todas as portas estavam abertas. Eram elas as dos prédios, das
lojas, das instituições públicas, dos supermercados, das lojas do pequeno
comércio, dos cafés, como este onde o homem entra agora. Antes de passar a
limpo todo o estabelecimento, era hora de deitar fora a cerveja que antes havia
bebido, pelo que a casa de banho pareceu-lhe bem, conquanto não precisasse de
mijar nela, pois não havia quem o visse, muito menos teria de seguir as regras
do bom comportamento exigentes da sociedade, ou ainda que lhe aparecesse um
polícia zeloso a dizer-lhe ó senhor, veja lá se quer uma ajudinha para o levar
à esquadra. Antes aparecesse o polícia, pensara. Fez a sua necessidade e
iniciou a vasculhar o café. Também aqui não havia vestígios de vida. Tudo era
conforme a vida, mas vida nem vê-la, nem tê-la.
Estava prestes a sair
quando, de relance, viu o que lhe pareceu ser um jornal escondido por debaixo
do balcão. Subiu-lhe ao rosto alguma esperança. Pegou no jornal ansiosamente.
Nas gordas estava escrito: “DIA 30 DE FEVEREIRO INICIAR-SE-Á O RECOLHER”. Nas
páginas seguintes constava um longo texto que ocupava todo o jornal e de que só
nos chegou este pequeno excerto, porquanto do lugar onde nos encontramos e da
forma como o homem leu o jornal, só conseguimos ler este pouco que aqui
apresentamos.
“Caros concidadãos e
concidadãs, por motivos já por todos nós sabidos e pelo qual temos passados
neste último ano e meio, é meu dever, como presidente de todos vós, tomar as
medidas que nenhum presidente alguma vez pretendeu tomar. (Aqui ao presidente
sobreveio-lhe a verborreia.) Pois como vos acabei de dizer, em face da situação
calamitosa por que passa a nossa sociedade, a qual não consegue mais sobreviver
com o inesperado que nos assolou, pois ninguém consegue viver em dignidade
quando a dignidade decide demitir-se, tenho a anunciar-vos que no dia 30 de
Fevereiro pelas 12:00 procederemos à recolha de todos vós. É mister que
estejais preparados quando os nossos bravos soldados baterem à vossa porta.
Como antes já vos havia dito em texto anterior e preparatório, deveis deixar
tudo para trás, à exepção das fotos que tiverdes, pois fundamentais para a
sobrevivência da nossa história como povo. Inclusive as roupas. Deveis portanto
levar apenas a roupa que queirais levar vestida, deixando pois toda a restante
para trás, evitando por conseguinte qualquer contaminação.”
“Eis tudo que vos
tenho a dizer.”
“Que deus esteja
connosco nesta altura precisada.”
Terminou o homem de
ler. O rosto mantinha-se impávido e sereno, passe o comum da expressão. Deslocou-se
para o supermercado a fim de matar a fome, passe o comum da expressão,
novamente. Comeu e bebeu, e no fim decidiu-se por ler o livro que trouxera e
que começava assim:
“Privados de qualquer
dignidade, imersos na maior abjeção moral por que um povo poderia passar,
deslocou-se o povo TODO para …”
edit
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