Jaime
sábado, 24 de outubro de 2015
A despedida é um cato, cujos espinhos ferem o mais fundo da alma. Pela sexta vez iniciara o seu romance, e se nas outras vezes não havia gostado do que escrevera, parecia-lhe que desta acertara. Empolgara-se com a imagem recentemente criada. Soava-lhe bem. Apelava aos sentimentos, às emoções, conforme a imagem. Achara que tocaria fundo no leitor e o prenderia logo de início. O pior foi depois, quando não conseguiu escrever a segunda frase, nem a terceira, e como nem a segunda nem a terceira escrevera, a quarta lhe não aparecera, pois.
Jaime era um neófito
na arte de escrever. Um aspirante a escritor. Mas não queria ser um escritor
qualquer. Sonhara, havia muito, ser como os grandes autores e entrar na
história indelével da literatura.
Desde os quatro anos
que vivia com os tios, quando estes o acolheram após a tragédia que sucedera a
seus pais. Aos olhos dos tios, como sói em boas famílias educadamente humildes,
ele não era menos que os outros dois filhos: Paulo e José, gémeos. Mais velho
que estes três anos, era como que um segundo pai de ambos. Protetor,
conselheiro, e primo, claro. Os tios, Justino e Maria de Jesus, cuidavam que
lhe não faltasse nada que não faltasse aos outros. O que aos dois faltasse, ao
outro faltaria também, porque mais família de falta do que ter. Justino tio
trabalhava numa drogaria; Maria de Jesus era mulher de limpezas. Amigos de
infância, estava-lhes destinado serem para sempre um do outro. Quando chegados
aos dezoito, Justino tio fora pedir a mão ao pai de Maria de Jesus, senhor
Joaquim Malheiro, homem da lavoura e honrado pai de três filhas, que agora não
vêm ao caso, tirante Maria de Jesus. Contara já Justino por diversas vezes a
história caricata aos filhos, que foi a de, como sucedia com frequência à
época, ter engravidado Maria de Jesus adrede a fim de lhe não ver negado o
pedido por seu pai, o de Maria de Jesus, claro está, e não o dele, Justino, que
esse gostava de Jesus como a uma filha. Outro remédio não teve senhor Joaquim
Malheiro de assentir, dando em consequência a mão de sua filha.
Os gémeos agora com
vinte e quatros anos, e portanto como o leitor aprioristicamente concluirá,
Jaime está com vinte e sete, trabalhavam ambos na loja defronte a sua casa, na
loja que antes fora de Margarido Oliveira e agora pertencia a João Palácio, que
a comprara àquele quando estava prestes a ir-se aos céus, que, acreditamos, o
acolheram de muito boa vontade e benevolência, mau grado os seus pecados. Um,
Paulo, era o moço de recados; o outro, José, era o rapaz do armazém.
Jaime, por sua vez,
trabalhava havia anos no armazém contíguo ao de João Palácio, e era homem dos
sete ofícios.
O que ficou por dizer
sobre as profissões de todos os que até agora retratamos deveu-se à pouca
importância que têm para a história que nos propusemos contar. Portanto,
cuidará o leitor de imaginar o que bem lhe aprouver.
Jaime aprendera o
gosto pelas letras muito cedo. Começara a ler aos cinco anos, por intermédio do
tio Fausto, irmão de Justino, solteiro bonacheirão mas dado às letras desde
muito cedo, homem de saias desde muito jovem, que o incentivara sobremaneira a
fim de poder ver no sobrinho aquilo que ele não logrou, a saber, tornar-se
homem das letras. Via pois no sobrinho a compensatória ilusão do seu fracasso. Aos
oito anos já Jaime lera uma boa parte dos clássicos, quase ao estilo milliano,
mas considerando outras obras. Parece ter nascido para os livros, dizia Fausto
ao irmão; este porém não tardava nunca na resposta, e à guisa dos pobres que
cuidam que a condição social não lhes permite ser mais do que são, retorquia
asseverando que os livros corrompiam o sobrinho, pois o melhor era dedicar-se
ao que sabia fazer do que fazer aquilo para o qual não estava destinado. A pobreza
é uma instituição, como a família, estabelecida com propósitos de ordem social.
Quanto mais pobres, mais submissos. Quanto mais submissos, mais ordeiros. Aos
doze havia lido mais do que todas as pessoas da vila. Jaime era, pois, um rapaz
refinado intelectualmente e cujas competências literárias faziam dele o rapaz
mais apetecido pelas jovens mulheres da vila, e bem assim pelos seus pais. Sem
embargo das competências e qualidades literárias, Jaime confinava-se todavia à
loja de João Palácio, exercendo os sete ofícios, o que demonstrava que era não
só um rapaz de letras mas igualmente um jovem rapaz com qualidades várias
atinentes ao que o labor lhe exigia.
Como em todas as
vilas e cidades, há os feios e os bonitos, os fracos e fortes de espírito, os
levianos e os santos, os ordeiros e os desordeiros, assim binariamente, como
categoricamente parece ser constituído o mundo. Respeitante à regra estética, a
vilazinha não é exceção. Deste modo, Dulce, pequeno espírito irreverente, é a
beleza da vila, pretendida por todos e pedida por muitos, a seu pai, recusados
todos. Filha de Mário Águas, comerciante conhecido pelo seu feitio irascível, o
que não impediu de ver aqueles dirigirem-se-lhe a casa com vista a
solicitar-lhe a mão da filha, e que, de outro modo não podia ser, rejeitados todos
de imediato, como acima se disse e ora se repete, para que se não esqueça.
Dulce tem vinte anos e uma beleza que não se assemelha a mulher alguma da vila.
Há quem o diga, e não há meio de o confirmar (nesta vila, entenda-se), que não
é filha do comerciante, porquanto a feiura dele contrasta sobremodo com a
beleza dela. Mas isto são as más-línguas que o dizem, pois o que não falta são
pais feios e filhos bonitos, como o inverso também é verdade. E terminamos por
aqui os juízos de valor. Dulce constituiu-se pois no centro das atenções dos
jovens rapazes da vila e por onde passa não há quem lhe não dedique uns olhares
e suspiros apaixonados.
É o caso, por
exemplo, dos filhos de Justino da drogaria. Paulo e Jaime, este por adoção. Já
José parece ter enveredado por caminhos diferentes, o que contraria o dito que
os gémeos sai iguaizinhos. Paulo ainda não fora daqueles que se fizeram ao
caminho em direção da casa de Mário Águas a fim de solicitar a mão de Dulce.
Jaime já o pensou, porém, mas tal como seu irmão a intenção tem-se ficado pelo
pensamento. Um por cobardia; outro, porque a hora não chegou ainda. Ambos,
porém, com intenção. Paulo apaixonara-se por Dulce aos dezasseis. Jaime aos
vinte e seis. Aquele quando ainda na escola. Jaime quando a viu passar frente
ao seu local de trabalho num dia em que Dulce passeava com as suas amigas.
Não cuidou Paulo de
esconder a sua paixão, como de resto não cuidam muitos jovens da vila. Jaime,
entendido assaz nas artes do amor mercê das leituras mas igualmente das
concretizadas, ocultou como quem oculta um crime. O que, está-se bem de ver,
tal como não há crime que não seja descoberto, não há ocultamento de amores que
não seja desvelado (quer-se dizer: o crime é descoberto, mas nem sempre o
criminoso).
Foi quando Jaime se
apaixonou por Dulce que a sua dedicação aos livros e à escrita se começou a
desvanecer. Não raro foram as vezes que pegando num livro não logrou passar da
primeira página; e que, iniciando um texto com vista ao romance, não passou da
primeira frase. Foi o que sucedeu, por exemplo, quando construíra e escrevera a
frase acima: “A despedida é um cato, cujos espinhos ferem o mais fundo da
alma.”. Desistia, e, permanecendo no quarto escuro, olhava distante o quarto
vazio. Pensava em Dulce e nos planos que tinha para ambos. Casar, ter filhos,
uma casa no campo, longe da vila, vivendo a família. Romantizava toda a
parafernália do amor. Ele e Dulce na casa, no campo, os filhos correndo
alegremente chamando pelo papá e mamã, e ele com os seus livros sob uma árvore
enquanto Dulce tricotei-a camisolas para os miúdos. Passava noites
romantizando. Nem parecia o Jaime que as gentes da vila conheceram, muito menos
o Jaime a quem o tio Fausto dedicara-se a ensinar as artes das letras e da
berzundela.
Correram dias e
noites e Jaime não havia jeito de sair do estado enamorado em que se
encontrava. Só quando Jaime soube que seu irmão Paulo fora pedir a mão de Dulce
ao senhor Joaquim Malheiro e este aceitara é que tomou a resolução de sair do
estado calamitoso em que permanecia há dias. Soubera-o pelo outro irmão, José,
que o dissera em casa ao pai Justino. Este rejubilou de alegria, pois há muito
que sonhava casar um dos filhos. Jaime sabia do enamoramento de Paulo por
Dulce, mas nunca julgara que Paulo desse um passo em frente, tal o cobarde que
era. Gostava imenso do irmão, mas sabia-o cobardolas. Por isso não lhe passou
pela cabeça que o irmão se deixasse das cobardices.
Passaram-se semanas e
Jaime foi aguentando todos os preparos para o casamento do irmão com Dulce.
Nunca mais permanecera no vazio do quarto a romantizar. Mentalizara-se que
Dulce se iria casar com seu irmão, pois era o melhor a fazer e não havia volta
que se pudesse dar. Assim, retornou aos seus livros e à tentativa de escrever o
seu romance, agora mais do que nunca, dizia de si para si. Devorou livros nas
semanas em que se ia preparando o casamento, pois não havia melhor distração do
que a leitura. De vez em quando saía para beber uns copos e conviver com
alguns, poucos, amigos. De mulheres não queria saber. Dedicar-se-ia ao seu
projeto literário, como agora lhe chamava e dizia aos amigos. Estes, porém, não
sabiam da sua paixão. Achavam que aquela determinação se devia à inspiração,
que outrora lhe havia faltado.
Chegou o dia,
finalmente, do casório. Paulo fora o primeiro a levantar-se, em estado de
ansiedade. O pai Justino, mais calmo, fora o terceiro. Maria Jesus havia sido a
segunda. José fora o quarto. Jaime, porém, não fora o quinto. Não havia
dormido, sequer. Não conseguira dormir um segundo que fosse, cogitando no
casamento. Não parara de pensar que Dulce nunca lhe iria pertencer. E este
pensamento descontrolava-o.
Era meio-dia quando
Dulce entrou na igreja de Santa Eulália. Vestida de branco, conforme as boas
regras do casamento católico, caminhava em direção ao altar, onde já permanecia
Paulo, que a esperava com deleite. O padre iniciara o casamento. Tudo era
lindo, todos admiravam Dulce e Paulo. Os homens invejavam Paulo, as mulheres
invejavam o vestido. Quando o padre pergunta se alguém se opõe ao casamento,
Jaime, que até então ainda não estava na igreja, diz eu, senhor padre. Toda a
igreja o olha, espantada. Paulo surpreende-se. Dulce fica perplexa. E estando
Paulo surpreendido e Dulce perplexa, já Dulce tomba no chão e Paulo tomba por
cima dela, para choque geral.
Passaram-se anos, sem
que o que aconteceu não fosse mencionado na vila. Jaime iniciara finalmente o
seu romance, cujo início nunca o abandonara: “A despedida é um cato, cujos
espinhos ferem o mais fundo da alma.”.
edit
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