Patrício
segunda-feira, 18 de abril de 2016
Quando o dr. Patrício sai já o sol se está escondendo, crepuscular, e ele, cambaleando de cenho confuso, dirige-se para casa, onde não tem quem o espera, afora um cão adotado faz umas semanas. Espera-o todavia uma carrada de papeis que lhe levara o Vitinho, o moço dos recados, a fim de dar uma vista de olhos em todos eles para tão logo os devolver ao quem lhos enviou. A casa já se vê longe e a custo caminha, caminha em direção a ela no fim de tarde quente como um vulcão. Porém, no momento em que está prestas a entrar em casa salta-lhe em frente Maria Francisca, mulher respeitadíssima na cidade pelos homens, inquisidoramente:
– Como tu vens, Patrício! – trata-o por tu.
Esta familiaridade provém de haverem partilhado lençóis há uns anos. Desde
então é tu para cá e para lá, com as raras exceções – porquanto dissera-lhe o dr. patrício que o
melhor é evitarmos estas familiaridades em frente às pessoas, sabes que eu
tenho um nome. Pois claro, um nome, como se Maria Francisca não o possuísse
também, ou como se houvesse alguém no mundo que o não tivesse.
Maria
Francisca preocupa-se com o dr. Patrício porque o coração assim lho diz e
igualmente porque ele é bom para ela, ajudando-a em tudo que possa, uma alma de
homem, na verdade. Como naquela vez em que ela, estando o trabalho precário, já
não comia há dois dias e ele a apanhara a mexer no lixo; levou-a com ele para
casa, deu-lhe de comer, deu-lhe banho, ia dar-lhe mais alguma coisa, mas a
pobre Maria já dormia, e mesmo que não, o corpo não daria para mais. Acordara
nessa manhã e o Patricinho tinha uma bandeja – com uma maça, uma banana, uma
côdea de pão com manteiga e ainda um copo de leite – em frente a Maria. Francisca sorrira àquela
surpresa. Por muitos homens que tivessem dormido com ela nunca um lhe fora tão
bondoso como Patricinho. Por isso gostava dele.
–
Come, e depois tens toalhas na casa de banho para tomares um banho. – Quando
Maria dá à cozinha, já Patrício se achava em torno de alguns papeis. Nunca
percebera que via ele naquela papelada, mas também nunca lho perguntara.
Achava-o misterioso quando o via compenetrado nos papeis. Sentara-se a
observá-lo. E ele gostava de a ver ali sentada, observando-o.
– A culpa é do Gomes.
Quando estou para sair faz sempre questão de me enfiar mais um copo.
– Sim, sim, e a culpa
d’eu ser puta também é dos homens que comigo dormem, deixa lá.
– Entra mas é antes
que alguém te veja a falar comigo.
Entraram ambos. O
cachorro ladrou a princípio, depois amainou-se e foi cheirar Patrício, de
seguida Francisca, e enfim foi recostar-se ao ninho que ele próprio fizera na
ausência do dono. Maria Francisca fora sentar-se familiarmente no sofá gasto,
como se fosse já da casa. Patrício fora mudar de roupa e quando voltou pergunta
a Maria Francisca se já comeu alguma coisa, se quer que faça jantar para dois.
A mulher anuiu, pois está com fome, por alguma razão ali estava à espera dele,
embora não apenas. O homem Patrício faz estrelar dois ovos e frita um bife, põe
umas batatas a fritar e em poucos minutos estão a comer. Repartem o bife porque
não há mais, conquanto suficiente a ambos porque grande, bebem o resto do vinho
que ficara na garrafa da noite anterior. Não dizem nada um ao outro enquanto
mastigam o bife, fosse porque esfomeados, fosse porque há um certo
constrangimento entre ambos, não se sabendo bem porquê. Maria Francisca lavará
os pratos finda a janta. Sentar-se-ão ambos no gasto sofá e em silêncio ficarão
durante algumas horas, quebrado apenas quando Patrício convida (e se oferta)
para partilhar a cama com Maria. Não queria ela outra coisa! Dormir com
Patrício não ia contra a deontologia da profissão, nem era obrigação, nem nada
que se pareça – antes constituía uma felicidade que nunca obtivera na vida.
Estar perto daquele homem bondoso era um estado semelhante ao do alpinista
quando atinge o cume da montanha. Lá em cima ele, como cá em baixo ela, sorriem
ambos de uma felicidade que só cada um por si pode experimentar.
Quando Maria Francisca
acorda já Patrício saiu há muito. Não obstante, de imediato, sentir-se só por
ali estar só, por não poder enroscar-se nele e abraçá-lo, espreguiça e sorri, e
o sol entra pela janela e clareia-lhe o rosto de felicidade. Deixa-se ficar por
mais uns minutos e depois levanta-se. Na cozinha encontra um papel com um
recado: “saí cedo, vou ao cemitério, depois passarei no Gomes para dar uns
recados, e logo voltarei. Tens pão e manteiga aí, come.”. Assim tacitamente
passam a viver juntos.
Patrício está frente
ao túmulo dos pais. Troca as flores que na semana passada lá deixara. Fica uns
minutos mais olhando-o, absorto. Depois decide-se a ir. Passar no Gomes, deixar
os recados, voltar para casa. Enquanto caminha em direção ao Gomes pensa por
breves instantes em Maria Francisca, se já se terá levantado, se já tomara o
pequeno-almoço, que estará a fazer. E assim chega ao Gomes. Dá os recados a
quem os espera. Pede um bagaço. Beberá outro e ficará algum tempo lendo as
notícias do dia de ontem, não olhando ninguém nem ouvindo palavra, que não é
seu costume, ainda que a conversa sobeje nas mesas ocupadas e o Gomes não se
cale um minuto. Tanto assim é que o Gomes se vira para ele:
– O senhor dr. quer
mais alguma coisa?
– Não!
– Então muito
obrigado, e volte sempre. – Por que
razão o Gomes o parece estar a despachar é coisa que não se sabe. Presume-se
que seja unicamente um motivo comercial.
– Não era preciso
dizê-lo, bem sabe que volto sempre. – Nesta altura o dr. Patrício deveria estar
a levantar-se para ir embora, tal a abordagem do Gomes o parecia insinuar.
– Foi um modo de
dizer, bem o sabe.
– Está na chalaça
comigo?
– Ò senhor dr. por
quem me toma?!
– Por quem me sirva
todos os dias diligentemente, que me não maça com questiúnculas e não se meta
na minha vida. – Pareceu sentir-se acossado pela abordagem.
– Doutra forma não
tem sido, senhor. dr. – Um gozo aparente
provém da voz do Gomes.
– Pois quero crer que
às vezes não parece.
– O senhor dr. hoje
está de mau humor.
– Acaba de me dar
razão.
– Razão?
– Sim. Acabei de lhe
dizer que às vezes o senhor é metediço.
– Ò senhor dr., pela
alma da minha rica filha que não sou o que senhor dr. diz que sou.
– É o que é.
– Não percebi.
– Quer que lho
explique?
– Se assim o desejar.
– O senhor é aquilo
que é para mim. O que é para si é uma outra questão.
– O senhor dr.
desculpar-me-á se lhe disser que não estou a entender nada do que está para aí
a dizendo.
- Aquilo que o senhor Gomes acha
que é para si é aquilo que de facto é
para si. Aquilo que eu acho que o senhor Gomes é para mim é de facto aquilo que é para mim.
– Não me levará a mal
o senhor dr. se lhe perguntar se o bagaço lhe caiu mal.
– Pelo contrário.
– Pois que não estou
entendendo nada.
– O que está dito,
dito está.
– Assim o seja,
senhor dr. Nem o pretendo contradizer.
– De pouco lhe
adiantaria.
– Como assim?
– O que se disse já
não se pode desdizer.
– Mas pode-se
retificar.
– De pouco valem as
retificações se não se acha nelas retidão.
– O senhor dr. hoje
está muito filosófico.
– …
– Vai mais um bagaço?
– Ò homem, eu já
devia estar a sair e está-me a querer enfiar pela goela mais outro bagaço? – Já
no dia anterior havia feito o mesmo e Patrício caíra como sempre cai. Às vezes
quando medita sobre isto concluiu que é do desejo de beber mais um copo do que
a técnica de venda do Gomes.
– Desculpe senhor
dr., é o hábito.
– Pois desabitue-se.
– Não é fácil, depois
de anos e anos. Além disso, vender é o meu serviço. Logo, não me pareceu nem
parece mal querer vender-lhe mais um bagaço.
– Ò homem, mande lá
vir mais um, então, que esta conversa já me deu sede.
– O senhor dr.
saberá, decerto saberá, que o bagaço não mata a sede, antes, porém …
– Ò homem, deixe-se
de conversa e traga-me lá o bagaço.
– É para já.
Não
o matou, mas moeu-o. Patrício sai já cambaleante (há quantos dias sai ele
cambaleante do Gomes? Maria Francisca saberá a resposta, não por acaso o tem
vigiado todos dias. Não por acaso lhe foi dar à porta ontem quando o viu
chegar.). Pensa agora em Maria e apressa-se para chegar a casa. Vai assim a
meio do caminho quando resolve passar novamente nos pais. Ultimamente tem
pensado muito neles. Na sua ida abrupta de que nunca recuperara. Faz já há anos
que o deixaram após um acidente que os vitimara ambos. Certo dia passavam sob a
ponte que faz a ligação entre as aldeias, vinham ambos da casa dos amigos e
casal Miranda, e assim do nada a ponte cede e desaba por sobre eles
impiedosamente. Quando levaram a triste notícia a Patrício ele baqueou e
desfaleceu ali mesmo. Gostavas-lhes muito. Tinham sido uns pais presentes,
sempre atenciosos, preocupados com as suas arreliações, atentos como poucos. E
poucos, na verdade, são assim. Porquê a eles?
Não faziam mal a uma pulga. Mas assim deus quis. E contra a vontade de
deus nada se pode. Ensimesmado, reentra Patrício no cemitério. Fala com eles em
silêncio. Vê-se um mexer de lábios. Às vezes parece mais um tolinho que ali
está a falar sozinho. Mas não é. É uma dor aguda no coração, uma lâmina que o
corta lentamente, sem remorsos, tal qual o talhante corta o pequeno e lindo
coelho que outrora vivo está aqui morto. Verte umas lágrimas. Fica assim um
pouco de tempo, sozinho no cemitério, sozinho no mundo (a Maria, sim, a Maria
…). Volta a casa, a Maria o espera agora como mulher.
– Atrasei-me um
pouco.
– Não faz mal.
Trataste de tudo que havias para tratar?
– Sim. Por hoje não
saio mais. Se quiseres sair, sai tu. Eu já daqui não saio.
Maria Francisca
aproxima-se dele e, com o coração a bater, meio a medo meio em hesitação, que
se não confunda nunca um com a outra, abre os braços como uma águia abriria as
suas asas, qual arcanjo vindo dos céus, e com ternura envolve-o num largo e
longamente amplexo, o qual Patrício acolheu coerente e igual ternura. Ficaram
assim minutos. Francisca, por meio do seu trabalho, aprendera desde há muito a
compreender os homens. Compreendia-os melhor que qualquer cientista da
psicologia. Sabia-lhes os defeitos e as virtudes, e mercê disso quando calar-se
ou falar. Aprendera que os homens, grosso
modo, não são dados a desabafos. E quando os são, eles tomam a iniciativa.
E é com efeito o que Patrício está prestes a fazer, desabraçados agora.
– Passei, como sabes,
no cemitério. Fui visitar os meus pais. É como quem diz, porque eles lá não
estão. Embora para mim é como se estivessem. Faço-lhes visitas desde que eles
ali foram sepultados. Que me alembre, nunca um dia faltei, faça sol ou chuva,
neve ou granizo, seja feriado ou domingo, natal e ano novo, carnaval ou páscoa.
Por vezes mais do que uma vez ao dia. É como se fosse o meu retiro a partir do
qual eu me recobro, passe a metáfora falecida e o verbo assaz desconchavado, para
os dias seguintes. Se lá não fosse diariamente como tenho feito desde então, creio
que hoje já cá não estaria. – Maria
tremeu a estas palavras, agora que tudo parece encaminhar-se conforme aos
corações. Em tantos anos que se conhecem nunca lhe perguntara, nem lhe tinha
ocorrido, pensa agora, se sentia falta dos seus pais, nada obstante saber que
Patrício tinha o hábito de os visitar. – Tenho saudades deles, sabes. Muitas!
Cada dia que passa é um dia que morro. É consabido que cada dia que passa é um
dia que morremos. A vida assim o diz, e dizê-lo é desnecessário. Nascemos para
morrermos. É a lei da vida. E as leis, não raro, são injustas. Como injusto foi
a morte dos meus pais. Como injusto foi eu ter dez anos e ficar órfão. Não
fosse a minha tia, que, como sabes, já ma levaram, não sei que seria de mim. Não
seria o dr. Patrício. Mesmo nem sei se seria Patrício, porque a cada pedaço que
nos tiram é um rasgo no coração e na personalidade que devém. Penso muitas
vezes no que seria eu se os pais estivessem vivos. Se seria o mesmo, se seria
melhor ou pior, e mais do que tudo, se sentiria o mesmo amor que hoje sinto por
eles. Não que eu não gostasse deles, não que eu nunca os admirasse, não que eu
alguma vez lhes fosse deselegante ou lhes não tenha dito que os amava, porque
em tudo isto eu fui conforme o amor dos filhos, ou conforme deve ser o amor dos
filhos, sempre presente e incondicional, assim como o foi amor que eles me
dedicaram. Estou em crer que eles não têm nada a apontar-me, da mesma forma que
eu nada tenho. E sem embargo de todo este amor mútuo, ecoa todavia como um
zumbido forte e insistente no ouvido o fraquejar de saber que não há amor nunca
que seja de mais e, por isso, o poderia ter dado mais do que dei. Dedicar-me
mais. O amor é dedicação. Consabidamente.
Maria Francisca tinha
os olhos molhados a estas palavras. Patrício não as notou, tão longe estava ao
proferi-las. Sequer a estava a olhar. Quando as pronunciou fora como estivesse
em transe, com os olhos longínquos, distantes, olhando um ponto na parede que a
seus olhos parecia um ponto a milhares e milhares de quilómetros perdido em mar
alto. Um silêncio abateu-se depois na casa, só quebrado pelo cachorro, que, por
mera coincidência ou entendimento que só os cães têm, se tinha mantido em
silêncio até então.
– Queres almoçar? –
Perguntara Maria, posto não ter palavras para lhe dizer. Há alturas em que as
palavras se reusam a sair, se a elas lhes foi dado esse alvedrio. Patrício
assentiu.
Almoçaram em
silêncio. Por dentro, contudo, era uma agitação em ambos, Maria pensava no que
acabara de ouvir. Patrício no que sentira ao proferir todo aquele solilóquio. Emergia
nele uma epifania. Sabia-o agora.
Quando almoçados e
louça lavada, Maria dissera a Patrício que ia dar um passeio e voltava num
instante. Patrício sentira-se aliviado porque desejava ficar a sós. Dissera-lhe
se podia levar o cachorro, pois precisava de andar um pouco, ao que Maria
Francisca respondera que sim, também me faz companhia. Nisto ficou Patrício
sozinho.
Mal Francisca saiu de
casa, Patrício levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. Sentia-se
agitado. A visita de manhã ao túmulo dos pais e a conversa de há pouco com
Maria tiveram nele um efeito estranhamente desconfortável. Habituado como
estava a estar sozinho, a guardar tudo que pensava para si, viu-se hoje a
revelar-se como nunca antes fizera. E revelara-se-lhe em consequência aquilo
que em todos estes anos procurara em vão até hoje. Continuara a andar de um
lado para o outro cogitando na revelação. Deslocara-se ao quarto, pegara num
bloco de notas e numa esferográfica. Sentara-se na pequena secretária da sala e
começou a escrever. Ao fim de meia hora terminou e saíra. Maria Francisca ainda
não tinha chegado.
Quando Maria entrara
em casa, pensou que Patrício estaria a dormir. Deu de comer ao cachorro, que
fome ele tinha! Foi ao quarto ver se lá estava Patrício. Não estava, porém. Na
cozinha também se não encontrava. Talvez na casa de banho. Mas também aí o não
encontrou. Chegada à sala viu em cima da secretária um papel, uma página de um
bloco de notas. Patrício havia-lho deixado. Talvez tenha saído e o deixara,
como o fizera de manhã.
Querida Maria,
espero que o teu
passeio haja sido bom e que o cachorro tenha corrido tudo que possa, a fim de à
noite poder dormir. Lembro-me agora que nunca lhe dei nome. E curiosamente ele
sempre me obedeceu, vá-se lá saber como e porquê. É um bom cachorro. Muito
meigo. Tem um respeito por nós como os homens não logram ter. Os cachorros são
muito obedientes e fieis. Já os homens são uns insurretos. E infiéis.
Quero que saibas que
apesar da vida que até hoje levaste, em nada ela fez de ti uma mulher
rancorosa. Pelo contrário, és a mulher mais meiga que conheci até hoje. Não
foram muitas, como bem sabes. Mas nenhuma tão carinhosa como tu. É verdade que
apenas tivemos duas vezes juntos, no sentido de partilharmos a cama. Uma há
anos, como bem te recordas, e uma outra esta noite. No meio disto, frequentaste
a minha casa noutras ocasiões e sempre muito solícita e carinhosa comigo. Creio
ter feito de tudo que estava ao meu alcance para te ajudar sempre que de mim
necessitaste. Se assim não sucedeu, desde já lamento muito.
Saí e não volto mais.
Deixo-te a casa. E espero que cuides bem do cachorro. Mas mais do que tudo, que
cuides bem de ti. Agora tens uma casa onde dormir e cozinhar. Aproveita bem a
vida, pois ainda és uma árvore a crescer e a florescer. Ah, e que flores vais
dar! Já as vejo lindas como tu.
Já não tenho mais
espaço para escrever. Mas creio ter dito o suficiente.
Teu,
Patrício.
edit
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