Patrício



        
       Quando o dr. Patrício sai já o sol se está escondendo, crepuscular, e ele, cambaleando de cenho confuso, dirige-se para casa, onde não tem quem o espera, afora um cão adotado faz umas semanas. Espera-o todavia uma carrada de papeis que lhe levara o Vitinho, o moço dos recados, a fim de dar uma vista de olhos em todos eles para tão logo os devolver ao quem lhos enviou. A casa já se vê longe e a custo caminha, caminha em direção a ela no fim de tarde quente como um vulcão. Porém, no momento em que está prestas a entrar em casa salta-lhe em frente Maria Francisca, mulher respeitadíssima na cidade pelos homens, inquisidoramente:
 – Como tu vens, Patrício! – trata-o por tu. Esta familiaridade provém de haverem partilhado lençóis há uns anos. Desde então é tu para cá e para lá, com as raras exceções –  porquanto dissera-lhe o dr. patrício que o melhor é evitarmos estas familiaridades em frente às pessoas, sabes que eu tenho um nome. Pois claro, um nome, como se Maria Francisca não o possuísse também, ou como se houvesse alguém no mundo que o não tivesse.
         Maria Francisca preocupa-se com o dr. Patrício porque o coração assim lho diz e igualmente porque ele é bom para ela, ajudando-a em tudo que possa, uma alma de homem, na verdade. Como naquela vez em que ela, estando o trabalho precário, já não comia há dois dias e ele a apanhara a mexer no lixo; levou-a com ele para casa, deu-lhe de comer, deu-lhe banho, ia dar-lhe mais alguma coisa, mas a pobre Maria já dormia, e mesmo que não, o corpo não daria para mais. Acordara nessa manhã e o Patricinho tinha uma bandeja – com uma maça, uma banana, uma côdea de pão com manteiga e ainda um copo de leite –  em frente a Maria. Francisca sorrira àquela surpresa. Por muitos homens que tivessem dormido com ela nunca um lhe fora tão bondoso como Patricinho. Por isso gostava dele.
         – Come, e depois tens toalhas na casa de banho para tomares um banho. – Quando Maria dá à cozinha, já Patrício se achava em torno de alguns papeis. Nunca percebera que via ele naquela papelada, mas também nunca lho perguntara. Achava-o misterioso quando o via compenetrado nos papeis. Sentara-se a observá-lo. E ele gostava de a ver ali sentada, observando-o.
– A culpa é do Gomes. Quando estou para sair faz sempre questão de me enfiar mais um copo.
– Sim, sim, e a culpa d’eu ser puta também é dos homens que comigo dormem, deixa lá.
– Entra mas é antes que alguém te veja a falar comigo.
Entraram ambos. O cachorro ladrou a princípio, depois amainou-se e foi cheirar Patrício, de seguida Francisca, e enfim foi recostar-se ao ninho que ele próprio fizera na ausência do dono. Maria Francisca fora sentar-se familiarmente no sofá gasto, como se fosse já da casa. Patrício fora mudar de roupa e quando voltou pergunta a Maria Francisca se já comeu alguma coisa, se quer que faça jantar para dois. A mulher anuiu, pois está com fome, por alguma razão ali estava à espera dele, embora não apenas. O homem Patrício faz estrelar dois ovos e frita um bife, põe umas batatas a fritar e em poucos minutos estão a comer. Repartem o bife porque não há mais, conquanto suficiente a ambos porque grande, bebem o resto do vinho que ficara na garrafa da noite anterior. Não dizem nada um ao outro enquanto mastigam o bife, fosse porque esfomeados, fosse porque há um certo constrangimento entre ambos, não se sabendo bem porquê. Maria Francisca lavará os pratos finda a janta. Sentar-se-ão ambos no gasto sofá e em silêncio ficarão durante algumas horas, quebrado apenas quando Patrício convida (e se oferta) para partilhar a cama com Maria. Não queria ela outra coisa! Dormir com Patrício não ia contra a deontologia da profissão, nem era obrigação, nem nada que se pareça – antes constituía uma felicidade que nunca obtivera na vida. Estar perto daquele homem bondoso era um estado semelhante ao do alpinista quando atinge o cume da montanha. Lá em cima ele, como cá em baixo ela, sorriem ambos de uma felicidade que só cada um por si pode experimentar.
Quando Maria Francisca acorda já Patrício saiu há muito. Não obstante, de imediato, sentir-se só por ali estar só, por não poder enroscar-se nele e abraçá-lo, espreguiça e sorri, e o sol entra pela janela e clareia-lhe o rosto de felicidade. Deixa-se ficar por mais uns minutos e depois levanta-se. Na cozinha encontra um papel com um recado: “saí cedo, vou ao cemitério, depois passarei no Gomes para dar uns recados, e logo voltarei. Tens pão e manteiga aí, come.”. Assim tacitamente passam a viver juntos.
Patrício está frente ao túmulo dos pais. Troca as flores que na semana passada lá deixara. Fica uns minutos mais olhando-o, absorto. Depois decide-se a ir. Passar no Gomes, deixar os recados, voltar para casa. Enquanto caminha em direção ao Gomes pensa por breves instantes em Maria Francisca, se já se terá levantado, se já tomara o pequeno-almoço, que estará a fazer. E assim chega ao Gomes. Dá os recados a quem os espera. Pede um bagaço. Beberá outro e ficará algum tempo lendo as notícias do dia de ontem, não olhando ninguém nem ouvindo palavra, que não é seu costume, ainda que a conversa sobeje nas mesas ocupadas e o Gomes não se cale um minuto. Tanto assim é que o Gomes se vira para ele:
– O senhor dr. quer mais alguma coisa?
– Não!
– Então muito obrigado, e volte sempre.  – Por que razão o Gomes o parece estar a despachar é coisa que não se sabe. Presume-se que seja unicamente um motivo comercial.
– Não era preciso dizê-lo, bem sabe que volto sempre. – Nesta altura o dr. Patrício deveria estar a levantar-se para ir embora, tal a abordagem do Gomes o parecia insinuar.
– Foi um modo de dizer, bem o sabe.
– Está na chalaça comigo?
– Ò senhor dr. por quem me toma?!
– Por quem me sirva todos os dias diligentemente, que me não maça com questiúnculas e não se meta na minha vida. – Pareceu sentir-se acossado pela abordagem.
– Doutra forma não tem sido, senhor. dr.  – Um gozo aparente provém da voz do Gomes.
– Pois quero crer que às vezes não parece.
– O senhor dr. hoje está de mau humor.
– Acaba de me dar razão.
– Razão?
– Sim. Acabei de lhe dizer que às vezes o senhor é metediço.
– Ò senhor dr., pela alma da minha rica filha que não sou o que senhor dr. diz que sou.
– É o que é.
– Não percebi.
– Quer que lho explique?
– Se assim o desejar.
– O senhor é aquilo que é para mim. O que é para si é uma outra questão.
– O senhor dr. desculpar-me-á se lhe disser que não estou a entender nada do que está para aí a dizendo.
- Aquilo que o senhor Gomes acha que é para si é aquilo que de facto é para si. Aquilo que eu acho que o senhor Gomes é para mim é de facto aquilo que é para mim.
– Não me levará a mal o senhor dr. se lhe perguntar se o bagaço lhe caiu mal.
– Pelo contrário.
– Pois que não estou entendendo nada.
– O que está dito, dito está.
– Assim o seja, senhor dr. Nem o pretendo contradizer.
– De pouco lhe adiantaria.
– Como assim?
– O que se disse já não se pode desdizer.
– Mas pode-se retificar.
– De pouco valem as retificações se não se acha nelas retidão.
– O senhor dr. hoje está muito filosófico.
– …
– Vai mais um bagaço?
– Ò homem, eu já devia estar a sair e está-me a querer enfiar pela goela mais outro bagaço? – Já no dia anterior havia feito o mesmo e Patrício caíra como sempre cai. Às vezes quando medita sobre isto concluiu que é do desejo de beber mais um copo do que a técnica de venda do Gomes.
– Desculpe senhor dr., é o hábito.
– Pois desabitue-se.
– Não é fácil, depois de anos e anos. Além disso, vender é o meu serviço. Logo, não me pareceu nem parece mal querer vender-lhe mais um bagaço.
– Ò homem, mande lá vir mais um, então, que esta conversa já me deu sede.
– O senhor dr. saberá, decerto saberá, que o bagaço não mata a sede, antes, porém …
– Ò homem, deixe-se de conversa e traga-me lá o bagaço.
– É para já.
         Não o matou, mas moeu-o. Patrício sai já cambaleante (há quantos dias sai ele cambaleante do Gomes? Maria Francisca saberá a resposta, não por acaso o tem vigiado todos dias. Não por acaso lhe foi dar à porta ontem quando o viu chegar.). Pensa agora em Maria e apressa-se para chegar a casa. Vai assim a meio do caminho quando resolve passar novamente nos pais. Ultimamente tem pensado muito neles. Na sua ida abrupta de que nunca recuperara. Faz já há anos que o deixaram após um acidente que os vitimara ambos. Certo dia passavam sob a ponte que faz a ligação entre as aldeias, vinham ambos da casa dos amigos e casal Miranda, e assim do nada a ponte cede e desaba por sobre eles impiedosamente. Quando levaram a triste notícia a Patrício ele baqueou e desfaleceu ali mesmo. Gostavas-lhes muito. Tinham sido uns pais presentes, sempre atenciosos, preocupados com as suas arreliações, atentos como poucos. E poucos, na verdade, são assim. Porquê a eles?  Não faziam mal a uma pulga. Mas assim deus quis. E contra a vontade de deus nada se pode. Ensimesmado, reentra Patrício no cemitério. Fala com eles em silêncio. Vê-se um mexer de lábios. Às vezes parece mais um tolinho que ali está a falar sozinho. Mas não é. É uma dor aguda no coração, uma lâmina que o corta lentamente, sem remorsos, tal qual o talhante corta o pequeno e lindo coelho que outrora vivo está aqui morto. Verte umas lágrimas. Fica assim um pouco de tempo, sozinho no cemitério, sozinho no mundo (a Maria, sim, a Maria …). Volta a casa, a Maria o espera agora como mulher.
– Atrasei-me um pouco.
– Não faz mal. Trataste de tudo que havias para tratar?
– Sim. Por hoje não saio mais. Se quiseres sair, sai tu. Eu já daqui não saio.
Maria Francisca aproxima-se dele e, com o coração a bater, meio a medo meio em hesitação, que se não confunda nunca um com a outra, abre os braços como uma águia abriria as suas asas, qual arcanjo vindo dos céus, e com ternura envolve-o num largo e longamente amplexo, o qual Patrício acolheu coerente e igual ternura. Ficaram assim minutos. Francisca, por meio do seu trabalho, aprendera desde há muito a compreender os homens. Compreendia-os melhor que qualquer cientista da psicologia. Sabia-lhes os defeitos e as virtudes, e mercê disso quando calar-se ou falar. Aprendera que os homens, grosso modo, não são dados a desabafos. E quando os são, eles tomam a iniciativa. E é com efeito o que Patrício está prestes a fazer, desabraçados agora.
– Passei, como sabes, no cemitério. Fui visitar os meus pais. É como quem diz, porque eles lá não estão. Embora para mim é como se estivessem. Faço-lhes visitas desde que eles ali foram sepultados. Que me alembre, nunca um dia faltei, faça sol ou chuva, neve ou granizo, seja feriado ou domingo, natal e ano novo, carnaval ou páscoa. Por vezes mais do que uma vez ao dia. É como se fosse o meu retiro a partir do qual eu me recobro, passe a metáfora falecida e o verbo assaz desconchavado, para os dias seguintes. Se lá não fosse diariamente como tenho feito desde então, creio que hoje já cá não estaria. –  Maria tremeu a estas palavras, agora que tudo parece encaminhar-se conforme aos corações. Em tantos anos que se conhecem nunca lhe perguntara, nem lhe tinha ocorrido, pensa agora, se sentia falta dos seus pais, nada obstante saber que Patrício tinha o hábito de os visitar. – Tenho saudades deles, sabes. Muitas! Cada dia que passa é um dia que morro. É consabido que cada dia que passa é um dia que morremos. A vida assim o diz, e dizê-lo é desnecessário. Nascemos para morrermos. É a lei da vida. E as leis, não raro, são injustas. Como injusto foi a morte dos meus pais. Como injusto foi eu ter dez anos e ficar órfão. Não fosse a minha tia, que, como sabes, já ma levaram, não sei que seria de mim. Não seria o dr. Patrício. Mesmo nem sei se seria Patrício, porque a cada pedaço que nos tiram é um rasgo no coração e na personalidade que devém. Penso muitas vezes no que seria eu se os pais estivessem vivos. Se seria o mesmo, se seria melhor ou pior, e mais do que tudo, se sentiria o mesmo amor que hoje sinto por eles. Não que eu não gostasse deles, não que eu nunca os admirasse, não que eu alguma vez lhes fosse deselegante ou lhes não tenha dito que os amava, porque em tudo isto eu fui conforme o amor dos filhos, ou conforme deve ser o amor dos filhos, sempre presente e incondicional, assim como o foi amor que eles me dedicaram. Estou em crer que eles não têm nada a apontar-me, da mesma forma que eu nada tenho. E sem embargo de todo este amor mútuo, ecoa todavia como um zumbido forte e insistente no ouvido o fraquejar de saber que não há amor nunca que seja de mais e, por isso, o poderia ter dado mais do que dei. Dedicar-me mais. O amor é dedicação. Consabidamente.
Maria Francisca tinha os olhos molhados a estas palavras. Patrício não as notou, tão longe estava ao proferi-las. Sequer a estava a olhar. Quando as pronunciou fora como estivesse em transe, com os olhos longínquos, distantes, olhando um ponto na parede que a seus olhos parecia um ponto a milhares e milhares de quilómetros perdido em mar alto. Um silêncio abateu-se depois na casa, só quebrado pelo cachorro, que, por mera coincidência ou entendimento que só os cães têm, se tinha mantido em silêncio até então.
– Queres almoçar? – Perguntara Maria, posto não ter palavras para lhe dizer. Há alturas em que as palavras se reusam a sair, se a elas lhes foi dado esse alvedrio. Patrício assentiu.
Almoçaram em silêncio. Por dentro, contudo, era uma agitação em ambos, Maria pensava no que acabara de ouvir. Patrício no que sentira ao proferir todo aquele solilóquio. Emergia nele uma epifania. Sabia-o agora.
Quando almoçados e louça lavada, Maria dissera a Patrício que ia dar um passeio e voltava num instante. Patrício sentira-se aliviado porque desejava ficar a sós. Dissera-lhe se podia levar o cachorro, pois precisava de andar um pouco, ao que Maria Francisca respondera que sim, também me faz companhia. Nisto ficou Patrício sozinho.
Mal Francisca saiu de casa, Patrício levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. Sentia-se agitado. A visita de manhã ao túmulo dos pais e a conversa de há pouco com Maria tiveram nele um efeito estranhamente desconfortável. Habituado como estava a estar sozinho, a guardar tudo que pensava para si, viu-se hoje a revelar-se como nunca antes fizera. E revelara-se-lhe em consequência aquilo que em todos estes anos procurara em vão até hoje. Continuara a andar de um lado para o outro cogitando na revelação. Deslocara-se ao quarto, pegara num bloco de notas e numa esferográfica. Sentara-se na pequena secretária da sala e começou a escrever. Ao fim de meia hora terminou e saíra. Maria Francisca ainda não tinha chegado.
Quando Maria entrara em casa, pensou que Patrício estaria a dormir. Deu de comer ao cachorro, que fome ele tinha! Foi ao quarto ver se lá estava Patrício. Não estava, porém. Na cozinha também se não encontrava. Talvez na casa de banho. Mas também aí o não encontrou. Chegada à sala viu em cima da secretária um papel, uma página de um bloco de notas. Patrício havia-lho deixado. Talvez tenha saído e o deixara, como o fizera de manhã.
Querida Maria,
espero que o teu passeio haja sido bom e que o cachorro tenha corrido tudo que possa, a fim de à noite poder dormir. Lembro-me agora que nunca lhe dei nome. E curiosamente ele sempre me obedeceu, vá-se lá saber como e porquê. É um bom cachorro. Muito meigo. Tem um respeito por nós como os homens não logram ter. Os cachorros são muito obedientes e fieis. Já os homens são uns insurretos. E infiéis.
Quero que saibas que apesar da vida que até hoje levaste, em nada ela fez de ti uma mulher rancorosa. Pelo contrário, és a mulher mais meiga que conheci até hoje. Não foram muitas, como bem sabes. Mas nenhuma tão carinhosa como tu. É verdade que apenas tivemos duas vezes juntos, no sentido de partilharmos a cama. Uma há anos, como bem te recordas, e uma outra esta noite. No meio disto, frequentaste a minha casa noutras ocasiões e sempre muito solícita e carinhosa comigo. Creio ter feito de tudo que estava ao meu alcance para te ajudar sempre que de mim necessitaste. Se assim não sucedeu, desde já lamento muito.
Saí e não volto mais. Deixo-te a casa. E espero que cuides bem do cachorro. Mas mais do que tudo, que cuides bem de ti. Agora tens uma casa onde dormir e cozinhar. Aproveita bem a vida, pois ainda és uma árvore a crescer e a florescer. Ah, e que flores vais dar! Já as vejo lindas como tu.
Já não tenho mais espaço para escrever. Mas creio ter dito o suficiente.
Teu,

Patrício. 
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