Orlando





Ouviram-se os tiros a poucos metros dali. Não havia dúvidas de que vieram do edifício ali perto. Olharam-se uns aos outros e acenaram com os olhos o assalto que se preparavam para fazer. Dali a minutos estariam a entrar no prédio.
Com o pé, o número 33 empurrara a porta com força e abrira-a. Uma vez ser prédio de muitos andares e os tiros estarem a ser trocados nos últimos pisos, esperavam não ser ouvidos. Entraram uns atrás dos outros, protegendo-se entre si. Já dentro, iniciaram o assalto aos últimos andares. Subiram as escadas com velocidade, porém sempre atentos, de sorte que chegassem o mais célere possível aos últimos pisos.
O grupo era constituído por dez atiradores. Dentre todos, o 33, o 28 e o 27 eram os mais eficientes na arte de atirar, algo que era reconhecido por todos. Dos três eram contadas histórias de grande feitos, o que para os amigos eram consideradas com grande admiração; para os inimigos com grande terror. A empresa do assalto dependia muito do talento dos três. Porém, o 33 morreria no primeiro andar, com um tiro a entrar-lhe pelo peito. O 28 seria abatido logo de seguida quando se preparava para atirar no inimigo. E o 27, com sorte semelhante, morreria às mãos de um dos mais admiráveis atiradores inimigos.
Assim, de um grupo dez atiradores restavam agora sete.
O inimigo pouco mais tinha em número. Mais uns cinco, talvez seis, não se sabia ao certo, porquanto um havia desaparecido e não se sabia dele há horas. Também o inimigo tinha os seus atiradores eficientes. E também o inimigo veria os seus melhores atiradores serem abatidos mais depressa do que o melhor dos atiradores disparava da sua arma. Por conseguinte, não sendo estes os que aqui estão os melhores dos melhores, era com estes com que se contava.
Os tiros que se ouviram antes quando o grupo do 33 e demais atiradores se achavam fora do prédio, provieram duma fenda que se abrira no grupo dos inimigos quando um dos atiradores discordara dos planos traçados. Sem contemplações, um dos melhores que já morrera atirara no discordante como quem atira numa lata de cerveja. A discórdia surgira quando o falecido, aquele que levou os tiros do eficiente atirador igualmente já morto, se insurgira contra o plano de saírem do prédio e irem ao encontro do inimigo. Pensara ele que a melhor estratégia seria ali esperar - escondidos cada um em cada compartimento do prédio - pelo inimigo e surpreendê-lo quando este entrasse. Se é certo que morrera mal o dissera, certo foi também que prevalecera a sua opinião. E assim concluíram por ficar esperando o inimigo como um animal pacientemente espera pela sua presa. O atirador eficiente que já morrera após ter atirado no que discordara, anuiu que o melhor com efeito seria esperar – o que, bem vistas as coisas, poderia ter pensado melhor antes de atirar no já falecido.
O inimigo aproxima-se. Ouvem-se já os passos lá em baixo. O medo apodera-se, a adrenalina sobe, cada qual se posiciona a fim de melhor atirar.

***

O prédio, a que deram o nome, em tempos, de Orlando, em homenagem ao seu arquiteto, contava com vinte e dois andares e sessenta e seis apartamentos. Devoluto há já uma década, encerrava uma degradação provocada por moradores sazonais. Em tempos frios ali confluíam vagabundos, toxicodependentes, prostitutas. Em tempos quentes, os grafiteitiros, os hippies, freaks, e alguns miúdos que iam lá parar a fim de brincar, entre outros tantos. Não faltavam as ratazanas, pois claro. A todos (excepção as ratazanas) a polícia corria de longe a longe, por ordem do proprietário que adquirira o edifício há um ano e que projetara estabelecer ali escritórios do mundo financeiro. Um antro de lixo nauseante acumulara-se durante uma década, mercê da estada daqueles, que eram parcos em limpezas e também se lhes não exigia, com efeito.
Eis, pois, o cenário que encontraram os atiradores, quer os que entraram primeiro, quer os que entrariam depois.
Os que primeiro entraram estavam neste momento a postos nos seus postos acordados anteriormente a fim de esperar pelo tiro certeiro. Sendo em maior número, estavam, portanto, em vantagem. Mas nem sempre ganha a maioria. Do lado direito do edifício, nos últimos dois andares, ficaram uns quatro, cada qual no seu apartamento à espera de atirar no inimigo. Do lado esquerdo, ficou a maioria. Os corredores, porém, ficaram desprotegidos adrede. O escopo era claro. Era preciso que o inimigo se deslocasse à vontade pelos corredores com vista a serem apanhados desprevenidos. Estando libertos os corredores, o inimigo poderia ser encurralado no centro pelos da direita e pelos da esquerda.
O inimigo, porém, estando em menor número, teve de acautelar-se com mais inteligência. De modo que, após terem chegado a meio do edifício, reuniram-se silenciosamente e acordaram que em vez de invadir os últimos dois pisos onde estaria o inimigo, o melhor seria ficar ali mesmo à espera que ele descesse.
Deste modo, nem os de cima vinham para baixo, nem os de baixo iam para cima. A guerra parecia ter entrado em estagnação.

***

O 77, atirador que fazia parte do grupo dos de baixo, encontrava-se agachado no apartamento contíguo ao do atirador 36 e estava há já uma hora à espera de movimentos, que ora não vinham e o faziam desesperar. Pensou por momentos levantar-se e ir ter com o 36. Doendo-lhe as pernas, o que mais lhe doía era a fome no estômago. O 36, por seu turno, refletia sobre a espera e concluía que era vã, e que o melhor seria avançar agora mesmo, apanhando-os desprevenidos, e quem sabe sonolentos.
No grupo dos de cima, o PP, que se encontrava justamente a dois andares por cima do 77, dormia há já meia hora, como bem calculara o 36. Em frente, o ZZ, que bem poderia fazer zzzz como o PP, estava com os nervos em franja e só à custa de muito treino conseguia aguentar não sair do seu aposento disparando para todos os lados.
Isto era apenas o pouco que pensavam uns e outros. Porque, na verdade, o que a todos ocorria com frequência bastante era saírem dali para fora e ir comer um hambúrguer, bem passado e com bastante molho, uma cerveja a acompanhar e depois um cigarro para selar o prazer.
Entediados todos, com fome uns poucos, alertas nenhum, terminaram uns por dormir, outros por fazerem uns charros e outros ainda por deambular na espera entediante que já se fazia há três horas. De tudo isto se dizia ser proibido e se lhes dissera quando na recruta. Foram ensinados e treinados para estarem sempre concentrados e alertas. Como bem se sabe, o corpo aguenta muita coisa, mas quando o cansaço emerge não há corpo que resista. E é assim que sucede neste momento a todos eles.
Estava nisto o inimigo de cima, e bem o sabemos o debaixo, quando resolve um deles ir ao encontro do outro que se encontrava no compartimento do lado. Não aguentava já de tanto tédio. Era o TT e fora ter com o CC. Estão nisto ambos, quando chega o PP. Fazem um charro, partilham como é hábito, e entabulam conversa, sobre o quê não se sabe bem. Neste ínterim chega o ZZ. Nervoso de carácter, não teve contemplações e disparou no TT, assim sem mais. O CC e o PP, atónitos, perguntam-lhe que raio lhe passou pela cabeça. Mas o ZZ dá meia volta e volta para o sítio para onde tinha sido destacado. Menos um tem o inimigo agora.

***


A espera ia já em quatro horas. Esperavam os de cima, esperavam os de baixo. A fome apertava a todos, e depois do charro ainda mais, que a larica sobrevém sobremaneira quando se dá uns bafos. Foi, pois, quando alguns do inimigo debaixo resolveram desertar e fazer o caminho inverso, descendo as escadas e abandonando o local de guerra.
Estavam estes já a duzentos metros do local quando os atiradores do inimigo, num acto de sorte, vieram espreitar à janela e viram aqueles a caminhar em direcção à cidade, despreocupados, na ramboia, seria o melhor que se poderia dizer. Acto contínuo, procederam ao mesmo e iniciaram descer o prédio, já despreocupados com inimigo. Estavam a meio da empreitada quando um disparo veio a surgir e atingiu um deles mesmo no meio do peito. O ZZ dispara e acerta na testa do que disparara antes. Certeiro como o Big Ben nas horas. Em poucos minutos estavam todos cá em baixo.
Abrem a porta de saída, o Manuel grita “João, espera por nós, que vamos convosco!”. O João responde que vão todos à hamburgueria, estamos cheios de fome, venham lá ter. Uma hora depois estão fartos de um bom hambúrguer, cerveja e conversa a rodos.

Entretanto, o atirador dos de cima que havia desparecido mal logo haviam chegado ao topo, acorda do sono profundo que havia estado durante as cinco horas, agarra na arma, põe-se a postos e alerta à espera do primeiro tiro. O tiro, porém, nunca chegou a ser. 
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