Nina
sexta-feira, 13 de novembro de 2015
Como em célebres histórias difíceis de acreditar mas não impossíveis de acontecer – sucedendo mais vezes do que possa parecer –, dera à vida numa alcofa, muito bem aconchegada como um gato enrolado sobre si mesmo, à porta de casa dos Martins. Júlio e Vitória Martins. Há muito casados, são um casal abastado mercê de heranças de ambos e bem-visto pelas pessoas da vila, consideradas pessoas de bem, como sempre o são as pessoas abastadas. Quando Nina se lhes deu à vida nessa manhã, Vitória vira no aparecimento da pequena um milagre, pois o seu útero era falho de perfeição e não lhe permitia procriar. Como sucede as mais das vezes com milagres, Vitória agradecera a deus por este lhe ter dado a possibilidade de ser mãe, corrigindo deste modo o defeito com que a prendara. Júlio, por outro lado, mais racional nestas coisas de milagres e crenças atribuiu o aparecimento da pequena a uma coincidência e às vezes, quando matutava no assunto com mais força, ao facto particular de eles serem abastados e pessoas de bem e, por conseguinte, a mulher que deixara a criança procedera com o intuito de dar um futuro à filha que ela lhe não poderia dar. Supondo que se tratara de mulher e não um homem, ainda que o hábito remeta as mais das vezes para a mulher. E supondo ainda que se tratara de deixar à pequena um futuro melhor do que poderia ter, se criada com as pessoas que a procriaram. De tudo isto não se sabe o que acontecera, os motivos e quem foi, sabendo-se apenas quando fora. E é quanto basta a Vitória, e em algumas ocasiões a Júlio.
Não o é todavia para
Nina. Desde criança que sabe que não é filha dos pais. Estes não lho esconderam
quando ela os ouviu falar sobre o assunto e de seguida os indagara. Fora-lhe
contada toda a história, tendo a história pouco para contar. Apareceste-nos
aqui na porta da frente numa alcofa e estavas muito bem embrulhada, como um
presente de deus, parecias um gatinho enrolado sobre si mesmo, não choraste
quando pegámos no cesto e te trouxemos para dentro para o calor da lareira; não
choraste quando te desembrulhámos dos cobertores que te acolhiam no quentinho e
não choraste quando pegámos em ti nos braços e nos miraste com olhinhos de
admiração, talvez de alívio, não sabemos. Eu e o teu pai não faláramos uma
palavra tal era o nosso espanto. Desde aquele dia que te fizéramos nossa filha.
Nunca soubemos quem foi que te deixara, quem era teus pais. Percorremos toda a
vila, e as das redondezas, em busca de saber quem eram eles e por que te
deixaram aqui, logo aqui na nossa casa, bendito seja deus, mas nunca
obtivéramos resposta. Não houve nem há alma nestas vilas que saiba de onde nos
apareceste. Desde então oficializámos a tua filiação. Éramos teus pais e assim
o seremos até morrermos. Isto ouvira Nina e até hoje esta é a versão com que
cresceu.
Mas Nina tem agora
dezoito anos, e sem embargo da história que os pais com emoção contaram,
sobreviera-lhe a necessidade de buscar ela as respostas que os pais nunca
obtiveram. Foi pois com determinação que se abeirara dos pais, estavam estes no
lareira em conversa silenciosa, e lhes disse meus queridos pais, estou muito
grata por tudo que vós fizestes por mim, desde o conforto à educação, ao
carinho permanente e amor incondicional como se fosse vossa filha consanguínea,
mas és nossa filha, interrompeu a mãe, porém Nina continuou sou vossa filha,
tendes razão, mas o não sou de sangue, e a mãe ia interromper novamente mas a
filha prosseguiu no discurso expondo as razões por que iria partir em busca de
respostas para as dúvidas que lhe assolavam de noite e que a não sossegavam. Sairia
daí a três dias e ir-se-ia instalar na vila próxima a fim de investigar tudo
quanto pudesse sobre a sua ascendência. Não adiantaria demovê-la pois estava
determinada e não haveria quem a demovesse, inclusivamente o amor dos pais, que
tanto amo neste mundo, disse Nina. Vitória começara a chorar; Júlio
contivera-se. Ambos, porém, entenderam. Deram o seu consentimento, supondo que
necessário fosse, e Nina partiria três dias depois.
A vila próxima tinha
pouco mais de cinquenta habitantes. Fazer o périplo não levaria uma semana.
Efetuaria as perguntas que fossem necessárias e as que não fossem necessárias
mas achasse úteis e as que nunca foram efetuadas. Nina instalara-se na única
pensão da vila. Ali ficaria por uma semana, a correr como desejara.
***
Antes muito tempo da
partida, Nina excluíra ir ao registo e notariado, uma vez que não sabia o nome
dos seus pais verdadeiros. Logo, consultar um genealogista pouco lhe
adiantaria, também. Assim, Nina decidiu-se por procurar nas vilas próximas, na
cidade e cidades limítrofes, e se necessário fosse ainda, sair de próprio país.
Com efeito, Nina procedeu as suas buscas parentescas pela vila vizinha, após o
que, resultando infrutíferas, seguir-se-iam as seguintes e depois as cidades e
depois o país e os países vizinhos e o mundo inteiro até ao dia em que
encontrasse os seus pais.
Metera-se no comboio
que fazia a ligação à vila e seguiu na empreitada. Pretendia começar a sua
investigação pela casa da senhora Aldevina, visto que, em tempos, quando se
cochichava na escola não ser filha dos pais, ouvira que Aldevina havia
comentado com os pais de Augusto que ela porventura fosse filha da Maria
Lurdes, em tempos longínquos habitante da vila vizinha. Sabia, portanto, que a
possível mãe já não morava na vila limítrofe, mas pelo menos saberia por
Aldevina onde ela teria ido viver. Chegara à vila já noite, pelo que só no dia
seguinte iria a casa de Aldevina.
A pensão onde
dormiria situava-se defronte ao edifício da junta de freguesia da vila, um
edifício imponente cuja história remontava há já duzentos anos, e a poucos
metros de casa de Aldevina, a quem Nina iria bater à porta logo pela manhã e a
quem extrairia o máximo que pudesse saber sobre os seus pais.
Logo pela manhã cedo,
Nina sai da pensão rumo a casa de Aldevina. Bate-lhe à porta, esta já a espera,
cumprimentam-se e a velha senhora diz para Nina entrar. Senta-te, senta-te,
minha filha, diz a velha. Nina senta-se, e sente o cheiro a bafio da casa. A
solicitude da velha pergunta a Nina se quer alguma coisa para beber ou comer, a
timidez da pequena diz que não, pois já saí comida e bebida da pensão, muito
obrigada. Muito bem, diz a velha, então que queres tu saber afinal, embora
soubesse a que vinha a pequena – eram palavras de preâmbulo, apenas. Nina
explica por que vem e o que quer saber, pois ouvira dizer que a velha sabia que
ela possivelmente seria filha de Maria Lurdes. Então a velha Aldevina inicia a
expor o que sabe à pequena.
Quanto tu apareceste
na casa dos Martins, como saberás, começaram imediatamente os rumores. Na tua
vila não havia ninguém que tivesse de barriga, pelo que ficava excluída. Ora,
aqui, tanto quanto sabíamos, também não. De maneira que, da nossa vila não
podias ter tu vindo. Foi então que soubéramos que na vila aqui ao lado havia
uma jovem rapariga que, segundo alguns viram, estava de barriga e podia muito
ter sido a tua mãe. Mas quando os teus pais por aqui andaram a saber quem eram
os teus pais, encontraram-se com essa jovem rapariga, a qual lhes mostrara a
criança que acabara de ter há uma semana. Os teus pais excluíram então que
poderia ser ela a tua mãe. Mas nunca ninguém se perguntou se a jovem pequena
não teria tido dois, pelo que tu serias a outra. Até hoje ninguém se preocupou
por saber e perguntar disso. Passaram-se estes anos e tanto quanto sei e os
meus velhos olhos conseguem ver, a criança já está grande, é uma mulher jovem
como tu e não tem parecenças nenhumas contigo, pelo que da minha parte eu te
digo que não és irmã, e logo não és filha dessa jovem, hoje mulher grande.
Depois de muito se pensar, refletir, especular mesmo, abandonou-se a reflexão e
a especulação. Anos passaram-se até que um dia estava eu na mercearia do
Fonseca e vi surgir uma mulher, a Maria Lurdes, e sobreveio-se-me como que
saída dos confins mais inóspitos da memória a lembrança de ter visto aquela
mulher, jovem pequena na altura, andar de esperanças. Até hoje nunca soube por
que ninguém se lembrara dela. Não era daqui, a pequena. Falei com ela nesse dia
e como quem não perde nada em perguntar e muito menos em arriscar quando nada
se tem, perguntei-lhe se a pequena estava boa de saúde, se estava crescida e se
já andava na escola. A cara dela, minha filha, enrubesceu de tal forma que eu
pensei seria o reflexo da maça vermelha que o Fonseca vendia ali mesmo.
Respondera-me ela que não, que não estava boa de saúde, que não estava crescida
e que não andava na escola. Não estava boa de saúde porque estivera doente, não
estava crescida porque nunca o chegara a crescer e não andara na escola porque
nunca chegara a lá chegar. A pequena, minha filha, tinha morrido de tuberculose
quando tinha dois anos. Se a vergonha tivesse vergonha teria ali dado mostras
mesmo a toda a gente que entrava. Depressa me despedi e fui-me para casa para
de lá não sair durante um mês. Mas estava eu nesta enclausura de vergonha
quando novamente a minha cabeça deu à luz uma outra ideia, a qual não era senão
a mesma que me ocorrera anos antes sobre a outra jovem, que era a de que a
jovem pequena pudesse ter tido uma irmã, que a mulher Maria Lurdes pudesse, por
acaso ou por obra de deus nosso senhor, ter tido gémeos, sendo tu irmã da
pequena que morrera sem ter crescido e ido à escola. Pusera-me a caminho da
vila a fim de tirar as dúvidas que me atormentavam. Perguntei em toda a vila,
em primeiro lugar, se a Maria Lurdes havia tido filhos, com vista a saber se
era verdadeiro o que me contara, e asseveraram-me que era verdade sim senhor,
que tivera e que infelizmente falecera. De seguida perguntei se era possível
que tivesse tido gémeos, mas nada me souberam dizer. Andava eu nestas lides de
polícia detetive quando dou de caras com Maria Lurdes. Reconhecera-me ela e
sorrira-me e ia-se já embora quando a amarro pelo braço e, qual polícia que
aponta a arma ao bandido, perguntei-lhe se ela não teria tido gémeos. Não sei
se era da sua natureza se das perguntas, mas não é que ela enrubesceu novamente
e me disse no entanto que não, não tive gémeos, infelizmente. E assim como o
disse, se foi. Até hoje, pequena, tenho esta ideia na minha cabeça de que tu és
filha dela. Já não mora na vila vizinha, segundo ouvi dizer, mas na vizinha da
vizinha. Passa lá, sim, e pergunta-lhe, que uma mãe nunca esquece uma filha.
Nina ouvira tudo isto
com atenção, mesmo quando observava algumas baratas subindo as paredes, ou
mesmo quando uma aranha do tamanho da ponta de um dedo lhe passou por cima da
mão. Nunca se desviara do que a trouxera ali. E sabendo pois que o passo
seguinte seria ir à vizinha da vizinha, eis o que devo fazer, dissera-se.
***
A vila vizinha da
vizinha era uma pequena vila ainda mais pequena que a vila vizinha e que a
vila, donde que todos se conheciam muitíssimo bem e melhor ainda conheciam os
seus segredos, o que, bem vistas as coisas, não eram segredos. Nada tinha de
diferente das vilas vizinhas senão a sua dimensão.
Nina aterrara na vila
vizinha da vizinha sem ir de avião, mas de comboio, uma vez mais. Desta vez,
porém, não tinha onde ficar, mas esperava, dada a pequenez da vila, ficar
apenas um dia, uma vez que unicamente iria saber de Maria Lurdes, suposta mãe
sua. Como em todas as vilas, não há melhor que perguntar nos cafés, nos
barbeiros e barbeiras, que as há nesta vila, nas mercearias, enfim, onde a
língua faz parte da família. E fora, por conseguinte, aonde Nina se dirigiu.
Porém, atalhando, saiu de todas elas sem saber o que fosse sobre a sua suposta
mãe, ou sem saber uma pista que fosse sobre a sua ascendência.
Desanimada, Nina, ia
já quando dá de caras com um senhor vetusto de bengala, um velho simpático cuja
cara parecia a de um velho feiticeiro, qual Gandalf, que se atém ante ela e lhe
pergunta se vem à procura de sua mãe. Nina acena com a cabeça tristonha, o
vetusto de bengala faz um gesto para que o siga. Nina acompanha-o. Vão rumo a
casa do velho onde este lhe dirá que Maria Lurdes já se não encontra na vila,
mas mesmo que se encontrasse de pouco importava, uma vez que não é sua mãe.
Nina ficará mais triste do que já se achava. O velho oferecer-lhe-á uma chávena
de chá, ela aceitará de bom grado. Ambos se sentarão à lareira e conversarão
noite adentro.
O velho Gandalf
contará o que sabe e acrescentará o que julga saber.
Desde pequeno que sou
dado a curiosidades, e uma vez sabido do teu caso, já lá vão dezoito anos, não
parei de pensar nele nem de investigar o que pudesse saber a respeito da tua
história. Soube há dias que te dirigias para aqui, por isso te encontrei ali.
Também eu já perguntei em todos os lados que perguntaste. Também eu pensei que
eras filha da Maria Lurdes. Mas não és. Ela mesma mo disse e nada me indica que
não devo acreditar nela. Percorri todas as vilas vizinhas e vizinhas das
vizinhas, inclusivamente saí do país e fui ao nosso vizinho, depois ao vizinho
do vizinho, e para além desses todos. Quase diria, posso dizer-to, que percorri
o mundo em busca de respostas para o teu nascimento. Eis que nada descobri. Não
há registo escrito ou oral do teu nascimento. Não há pai ou mãe que tenha
conhecimento do teu nascimento. Não há pai ou mãe que tenham conhecimento de te
haver concebido. Não há pai ou mãe que te reconhecem como filha ou te
reconheçam os olhos. Não hã mãe ou pai que tenham conhecimento de te haverem
deixado na alcofa em frente à porta dos Martins. Não há mãe ou pai que alguma
vez te tenham visto no colo deles ou de outrem. Não há pai ou mãe neste mundo
que possam ser teus pais e tu filha deles, naturalmente. Eis a verdade tão nua
e tão crua como uma mulher sem roupa e uma maçã tão verde. És uma Eva, Nina. És
uma Eva, Nina.
Nina saiu de casa do
velho rumo não se sabe onde, tão confusa estava de se saber uma Eva nua e uma
maçã crua. Não voltou para trás a fim de fazer o caminho que fizera e a levara
ali. Partiu para o mundo e o mundo partiu dela.
edit
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