Libório




Houvera quem se tivesse dado ao trabalho de me conceber. Benditos sejam! Houvera quem me pusesse o nome de Libório, mas às vezes chamam-me Lib. Houvera muitas coisas na minha vida. Benditas sejam! Algumas delas, contar-vo-las-ei. Outras morrerão comigo, como morre muita coisa connosco sem nos darmos conta disso.
Tenho vinte e três anos. Um terço da vida já lá vai. Não a recuperarei nunca. O que ficou para trás é impossível de recuperar. Ter consciência disto é morrer todos os dias.
Vivi bem, enquanto pude. Fiz esforços para a que minha vida fosse o mais suportável possível. Umas vezes consegui-o; outras não. Importa tentar, sói dizer-se. E tentei.
Quando somos crianças achamos que somos diferentes das demais. Achamo-nos especiais. Os pais quase nos fazem acreditar nisso. Os seus filhos são sempre especiais. E contudo eu o era. Nunca me disseram em que era eu especial. E eu nunca o descobri. Mas sei que fui especial.
Não era porque fora intelectualmente precoce: aos quatro já sabia ler e escrever. Não creio igualmente que fosse por criar empatia com as pessoas. Ou que fosse a compaixão que brotava de mim à medida que a consciência se ia formando que fizera de mim especial. Enfim, não sei mesmo o que fora. Só sei que o fora.
Quando tinha seis anos, tivera uns vizinhos muito pobres. Todos sabíamos que aquela família vivia com sobejas dificuldades. O Pedrito, que era o filho dos meus vizinhos, não raro me dizia, com o ranho a cair-lhe pelo nariz, que tinha fome. Lembra-me ainda hoje muito claramente quando mo dissera da primeira vez. Desatei a chorar e fui a correr para os braços da minha mãe, a fim de lhe dizer que ia levar a comida que sobrara do almoço ao Pedrito, pois estava com fome e tinha-mo dito. Não pronunciara uma palavra, dado que pensava que não falando dos problemas eles não existiam. Era o procedimento vulgar das pessoas vulgares. Fechar os olhos ao que nos rodeia para que o infortúnio dos outros nos não afete. O Pedrito comeu sofregamente o pouco que lhe levara. Era muito para quem tinha e comia muito pouco. Perguntava-lhe eu enquanto ele comia se estava a gostar, e ele olhava-me com a perna de frango na boca, sujo, acenava com a cabeça e continuava. Comia como um cão, o Pedrito! Perdoe-se-me a comparação. Mas comia mesmo como um cão. Aquele meu gesto era para mim mil refeições que eu pudesse ter durante a vida. A satisfação que obtivera ao ver o Pedrito comer era para mim impagável. Quando cheguei a casa nessa tarde, já princípio de noite, dissera a minha mãe que o Pedrito comeria, doravante, em nossa casa todos os dias até os pais lograrem um trabalho. Os meus pais não disseram uma palavra. E o Pedrito passou a comer lá em casa. Umas vezes também dormia.
Os pais de Pedrito não tinham qualquer problema com álcool e essas coisas a que habitualmente as pessoas associam à pobreza. A mãe, Josefina, fora despedida da fábrica onde trabalhava há já quinze anos. Como ela, outras mães. Ao pai, Gabriel, sucedera-lhe o mesmo, depois da empresa para a qual trabalhava ter entrado em insolvência. Estavam em falta com a renda de casa havia meses, a luz estava quase a ir-se, o gás já só havia a última botija, e sem a qual não se podia cozinhar e com a qual faziam apenas uma refeição por dia, contando sempre os minutos quando a usavam, e por causa disso não tomavam banho há semanas. Quando ia buscar o Pedrito para almoçar ou jantar, ou para brincarmos, entrava naquela casa e o cheiro penetrava em mim com uma força que me fazia perder a fome, quando se tratava de levar o Pedrito para comer.
O Pedrito começara a ser o irmão que eu não tivera. Protegia-o como se fora meu irmão. Brincávamos ao esconde-esconde, aos cowboys, jogávamos à bola, íamos à ameixoeira do senhor Manel roubar umas ameixas, outras vezes umas maças, e ríamo-nos como doidos! Ah, que saudade desses tempos!
Depois o Pedrito mudara-se, com os pais, para a casa dos avós, cuja ficava a oito quilómetros. De vez em quando pegava na bicicleta e ia visitá-lo, dado que ele não tinha uma. Quando me via, lá vinha a correr na minha direção e pedia para o levar nela. Colocava-se de lado e lá descíamos a toda a velocidade a que a bicicleta podia atingir. Depois pedia-me para andar nela. Pedia-me para lhe ensinar a fazer cavalinhos. Para lhe ensinar a fazer peões. Ah, o Pedrito!
Recordo-me como se fosse hoje, estava a fazer os deveres de casa quando a minha mãe entrou no quarto. Parecia ter os olhos molhados. E disse-me: “Libório, quero que venhas à sala, porque eu e o teu pai queremos falar contigo.” Como a escola me corria bem, pensei que me iam dar uma prenda, pois já há muito que lhes pedia a nova bola de futebol que ia ser a do próximo mundial. À minha ansiedade de ver a nova bola, sobreveio o baque, forte, lancinante, como uma faca afiada apunhalando cada pedaço do meu corpo, a notícia que o Pedrito tinha falecido. Corri porta fora a chorar, e os meus pais atrás de mim chamando-me. Corri tanto nesse dia!
Foi a partir desse dia que me decidi que queria ser bombeiro. E também nesse dia nasceu comigo a vontade de ser atleta. A primeira, porque queria salvar milhares de milhões de Pedritos. A segunda, porque queria correr infinitamente à procura do Pedrito.
Tinha então catorze anos quando me inscrevi nos bombeiros. Primeiro, fui cadete. Depois aspirante. E depois bombeiro de terceira classe.
À época, com quinze anos, já podíamos fazer o que então se chamava de serviço. Fora pois ainda muito novo que comecei a fazer serviços. Lembra-me ainda hoje o primeiro que fiz. O Tó foi o motorista. Uma senhora idosa, acamada, com dificuldades de respiração, necessitava da nossa ajuda. A filha havia telefonado para os bombeiros para que a fossem buscar. E eu e o Tó lá a conduzimos ao hospital. Durante os meses seguintes, a infeliz idosa passou a ser cliente habitual dos bombeiros e do hospital. Ainda a fui buscar umas três vezes. Depois, ou morreu, ou morreu, pois deixei de a ir buscar e de a ver no hospital.
A segunda vez fora uma transferência. Um fulano que havia tido um acidente de mota e partira o braço tinha de ser transferido para o hospital da cidade vizinha, uma vez que o hospital da nossa cidade não tinha o serviço de ortopedia. Foi um serviço simples, visto que o senhor andava e nem fora preciso a maca.
Depois houve uma terceira e uma quarta e por aí adiante.
Vi coisas tenebrosas. (Não fora só o Herberto que as viu.)
Estar perto da morte não me fez olhá-la de forma diferente. Vê-la tão-pouco. Em nenhuma morte vi o Pedrito. Procurei o Pedrito em todas as mortes que se me depararam na frente, mas em vão. Pensei que confraternizando com a morte pudesse fazer as pazes com ela e entendê-la como o comum das pessoas a entende, a saber, que faz parte da vida. Mas até hoje nunca a entendi. Perguntei-lhe diversas vezes porque levara o Pedrito, mas a puta nunca me respondeu. Em resposta, levava mais um que me passara nas mãos. E a cada um que me tirava das mãos, era mais um Pedrito que me deixava.
Seja por exemplo aquela senhora que caíra do trator enquanto lavrava o campo. Quando chegámos ainda estava viva. Quando arrancámos estava-se a ir. E quando chegámos ao hospital, foi-se mesmo de vez – talvez ter com o Pedrito. Com a maca nas nossas mãos, passámos em frente às pessoas que estavam nas urgências, ora esperando ser atendidas, ora esperando por familiares serem atendidos, e entrámos de rompante. Os médicos vieram logo em socorro. Ainda em cima da maca, fizeram os médicos todos os esforços para trazê-la da morte, usando o desfibrilador. Choque atrás de choque a mulher insistiu ficar na morte. Só ouvi a médica dizer para a enfermeira que eram tais e tais horas. Mais uma!
Quando comecei nas corridas conheci a Felisbela. Também corria. Passámos a treinar juntos. A Felisbela tinha um coração enorme, por isso me apaixonei por ela. Mas um dia parou-lhe.
Fazia eu o meu percurso habitual de treinos quando a vi passar por mim. Ia sozinha. Não era habitual ver uma mulher correr. Aliás, nunca tinha visto sequer. Nesse dia, não disse nada. No dia seguinte, tornei a vê-la, mas envergonhado nada disse. Andei uma semana para lhe falar e não lhe falei. Eis que quando me decido a falar, Felisbela se abeira de mim e me pergunta, com um sorriso na cara tão belo quanto os vedas, se pode fazer-me companhia. Anuí. Mais a mais porque treinava sozinho e companhia era sempre bem-vinda. E sendo Felisbela, melhor ainda. Dois meses depois estávamos a namorar.
A nossa primeira corrida juntos  tivera dez quilómetros. Era numa das cidades vizinhas. Eu fiquei em vigésimo quinto. Ela em décima nona. Nos respetivos géneros.
Num dos nossos treinos conjuntos, certo dia, combináramos fazer uma meia-maratona, mas em ritmo de competição. Acordáramos que treinaríamos para ela e que a segunda do calendário competitivo a correríamos. Até hoje Felisbela ainda a está a correr.
Desde esse dia, abandonei as corridas. Nunca encontrara o Pedrito (e corri, corri, corri para encontrá-lo), e perdera, ainda, Felisbela.

Como bombeiro que sou, e mau grado as mortes que vi, tive a felicidade de nunca ter visto colegas meus morrerem em incêndios, como quase todos os anos morrem colegas nossos. Nunca gostei muito de combater incêndios. É apavorante ver as labaredas amarelo-torrados defronte a nós. Mesmo com a agulheta na mão, elas intimidam-nos. O calor deixa-nos sem pensar. O melhor, e muitas vezes o pensei, é fugir. Fugir para longe dali. Mas nunca fugi. Sempre achei que era especial, e que a minha especialidade era defrontar a morte. Via-a vezes suficientes para não temê-la. Não a temo. Ela vem, chega devagar, a chama lenta inicia primeiro por amarrar-se às botas, depois vai subindo pelas calças, sinto o calor trespassar o meu corpo, o cheiro a queimado, a carne queimada, mas não a temo. Enfrento-a como a enfrentei toda a minha vida. Ei-la aqui: em mim. Chegou. Finalmente vou encontrar-me com o Pedrito. 
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