Libório
sexta-feira, 30 de outubro de 2015
Houvera quem se tivesse dado ao trabalho de me conceber. Benditos sejam! Houvera quem me pusesse o nome de Libório, mas às vezes chamam-me Lib. Houvera muitas coisas na minha vida. Benditas sejam! Algumas delas, contar-vo-las-ei. Outras morrerão comigo, como morre muita coisa connosco sem nos darmos conta disso.
Tenho vinte e três
anos. Um terço da vida já lá vai. Não a recuperarei nunca. O que ficou para
trás é impossível de recuperar. Ter consciência disto é morrer todos os dias.
Vivi bem, enquanto
pude. Fiz esforços para a que minha vida fosse o mais suportável possível. Umas
vezes consegui-o; outras não. Importa tentar, sói dizer-se. E tentei.
Quando somos crianças
achamos que somos diferentes das demais. Achamo-nos especiais. Os pais quase
nos fazem acreditar nisso. Os seus filhos são sempre especiais. E contudo eu o
era. Nunca me disseram em que era eu especial. E eu nunca o descobri. Mas sei
que fui especial.
Não era porque fora
intelectualmente precoce: aos quatro já sabia ler e escrever. Não creio
igualmente que fosse por criar empatia com as pessoas. Ou que fosse a compaixão
que brotava de mim à medida que a consciência se ia formando que fizera de mim
especial. Enfim, não sei mesmo o que fora. Só sei que o fora.
Quando tinha seis
anos, tivera uns vizinhos muito pobres. Todos sabíamos que aquela família vivia
com sobejas dificuldades. O Pedrito, que era o filho dos meus vizinhos, não
raro me dizia, com o ranho a cair-lhe pelo nariz, que tinha fome. Lembra-me
ainda hoje muito claramente quando mo dissera da primeira vez. Desatei a chorar
e fui a correr para os braços da minha mãe, a fim de lhe dizer que ia levar a
comida que sobrara do almoço ao Pedrito, pois estava com fome e tinha-mo dito.
Não pronunciara uma palavra, dado que pensava que não falando dos problemas
eles não existiam. Era o procedimento vulgar das pessoas vulgares. Fechar os
olhos ao que nos rodeia para que o infortúnio dos outros nos não afete. O
Pedrito comeu sofregamente o pouco que lhe levara. Era muito para quem tinha e
comia muito pouco. Perguntava-lhe eu enquanto ele comia se estava a gostar, e
ele olhava-me com a perna de frango na boca, sujo, acenava com a cabeça e
continuava. Comia como um cão, o Pedrito! Perdoe-se-me a comparação. Mas comia
mesmo como um cão. Aquele meu gesto era para mim mil refeições que eu pudesse
ter durante a vida. A satisfação que obtivera ao ver o Pedrito comer era para
mim impagável. Quando cheguei a casa nessa tarde, já princípio de noite,
dissera a minha mãe que o Pedrito comeria, doravante, em nossa casa todos os
dias até os pais lograrem um trabalho. Os meus pais não disseram uma palavra. E
o Pedrito passou a comer lá em casa. Umas vezes também dormia.
Os pais de Pedrito
não tinham qualquer problema com álcool e essas coisas a que habitualmente as
pessoas associam à pobreza. A mãe, Josefina, fora despedida da fábrica onde
trabalhava há já quinze anos. Como ela, outras mães. Ao pai, Gabriel,
sucedera-lhe o mesmo, depois da empresa para a qual trabalhava ter entrado em
insolvência. Estavam em falta com a renda de casa havia meses, a luz estava
quase a ir-se, o gás já só havia a última botija, e sem a qual não se podia
cozinhar e com a qual faziam apenas uma refeição por dia, contando sempre os
minutos quando a usavam, e por causa disso não tomavam banho há semanas. Quando
ia buscar o Pedrito para almoçar ou jantar, ou para brincarmos, entrava naquela
casa e o cheiro penetrava em mim com uma força que me fazia perder a fome,
quando se tratava de levar o Pedrito para comer.
O Pedrito começara a
ser o irmão que eu não tivera. Protegia-o como se fora meu irmão. Brincávamos
ao esconde-esconde, aos cowboys, jogávamos à bola, íamos à ameixoeira do senhor
Manel roubar umas ameixas, outras vezes umas maças, e ríamo-nos como doidos!
Ah, que saudade desses tempos!
Depois o Pedrito
mudara-se, com os pais, para a casa dos avós, cuja ficava a oito quilómetros. De
vez em quando pegava na bicicleta e ia visitá-lo, dado que ele não tinha uma.
Quando me via, lá vinha a correr na minha direção e pedia para o levar nela.
Colocava-se de lado e lá descíamos a toda a velocidade a que a bicicleta podia
atingir. Depois pedia-me para andar nela. Pedia-me para lhe ensinar a fazer
cavalinhos. Para lhe ensinar a fazer peões. Ah, o Pedrito!
Recordo-me como se
fosse hoje, estava a fazer os deveres de casa quando a minha mãe entrou no
quarto. Parecia ter os olhos molhados. E disse-me: “Libório, quero que venhas à
sala, porque eu e o teu pai queremos falar contigo.” Como a escola me corria
bem, pensei que me iam dar uma prenda, pois já há muito que lhes pedia a nova
bola de futebol que ia ser a do próximo mundial. À minha ansiedade de ver a
nova bola, sobreveio o baque, forte, lancinante, como uma faca afiada
apunhalando cada pedaço do meu corpo, a notícia que o Pedrito tinha falecido.
Corri porta fora a chorar, e os meus pais atrás de mim chamando-me. Corri tanto
nesse dia!
Foi a partir desse
dia que me decidi que queria ser bombeiro. E também nesse dia nasceu comigo a
vontade de ser atleta. A primeira, porque queria salvar milhares de milhões de
Pedritos. A segunda, porque queria correr infinitamente à procura do Pedrito.
Tinha então catorze
anos quando me inscrevi nos bombeiros. Primeiro, fui cadete. Depois aspirante.
E depois bombeiro de terceira classe.
À época, com quinze
anos, já podíamos fazer o que então se chamava de serviço. Fora pois ainda
muito novo que comecei a fazer serviços. Lembra-me ainda hoje o primeiro que
fiz. O Tó foi o motorista. Uma senhora idosa, acamada, com dificuldades de
respiração, necessitava da nossa ajuda. A filha havia telefonado para os
bombeiros para que a fossem buscar. E eu e o Tó lá a conduzimos ao hospital.
Durante os meses seguintes, a infeliz idosa passou a ser cliente habitual dos
bombeiros e do hospital. Ainda a fui buscar umas três vezes. Depois, ou morreu,
ou morreu, pois deixei de a ir buscar e de a ver no hospital.
A segunda vez fora
uma transferência. Um fulano que havia tido um acidente de mota e partira o
braço tinha de ser transferido para o hospital da cidade vizinha, uma vez que o
hospital da nossa cidade não tinha o serviço de ortopedia. Foi um serviço
simples, visto que o senhor andava e nem fora preciso a maca.
Depois houve uma
terceira e uma quarta e por aí adiante.
Vi coisas tenebrosas.
(Não fora só o Herberto que as viu.)
Estar perto da morte
não me fez olhá-la de forma diferente. Vê-la tão-pouco. Em nenhuma morte vi o
Pedrito. Procurei o Pedrito em todas as mortes que se me depararam na frente,
mas em vão. Pensei que confraternizando com a morte pudesse fazer as pazes com
ela e entendê-la como o comum das pessoas a entende, a saber, que faz parte da
vida. Mas até hoje nunca a entendi. Perguntei-lhe diversas vezes porque levara
o Pedrito, mas a puta nunca me respondeu. Em resposta, levava mais um que me
passara nas mãos. E a cada um que me tirava das mãos, era mais um Pedrito que
me deixava.
Seja por exemplo
aquela senhora que caíra do trator enquanto lavrava o campo. Quando chegámos
ainda estava viva. Quando arrancámos estava-se a ir. E quando chegámos ao
hospital, foi-se mesmo de vez – talvez ter com o Pedrito. Com a maca nas nossas
mãos, passámos em frente às pessoas que estavam nas urgências, ora esperando
ser atendidas, ora esperando por familiares serem atendidos, e entrámos de
rompante. Os médicos vieram logo em socorro. Ainda em cima da maca, fizeram os
médicos todos os esforços para trazê-la da morte, usando o desfibrilador.
Choque atrás de choque a mulher insistiu ficar na morte. Só ouvi a médica dizer
para a enfermeira que eram tais e tais horas. Mais uma!
Quando comecei nas
corridas conheci a Felisbela. Também corria. Passámos a treinar juntos. A
Felisbela tinha um coração enorme, por isso me apaixonei por ela. Mas um dia
parou-lhe.
Fazia eu o meu
percurso habitual de treinos quando a vi passar por mim. Ia sozinha. Não era
habitual ver uma mulher correr. Aliás, nunca tinha visto sequer. Nesse dia, não
disse nada. No dia seguinte, tornei a vê-la, mas envergonhado nada disse. Andei
uma semana para lhe falar e não lhe falei. Eis que quando me decido a falar, Felisbela
se abeira de mim e me pergunta, com um sorriso na cara tão belo quanto os
vedas, se pode fazer-me companhia. Anuí. Mais a mais porque treinava sozinho e
companhia era sempre bem-vinda. E sendo Felisbela, melhor ainda. Dois meses
depois estávamos a namorar.
A nossa primeira
corrida juntos tivera dez quilómetros. Era numa das cidades vizinhas. Eu fiquei
em vigésimo quinto. Ela em décima nona. Nos respetivos géneros.
Num dos nossos
treinos conjuntos, certo dia, combináramos fazer uma meia-maratona, mas em
ritmo de competição. Acordáramos que treinaríamos para ela e que a segunda do
calendário competitivo a correríamos. Até hoje Felisbela ainda a está a correr.
Desde esse dia, abandonei
as corridas. Nunca encontrara o Pedrito (e corri, corri, corri para encontrá-lo),
e perdera, ainda, Felisbela.
Como bombeiro que sou,
e mau grado as mortes que vi, tive a felicidade de nunca ter visto colegas meus
morrerem em incêndios, como quase todos os anos morrem colegas nossos. Nunca gostei
muito de combater incêndios. É apavorante ver as labaredas amarelo-torrados
defronte a nós. Mesmo com a agulheta na mão, elas intimidam-nos. O calor
deixa-nos sem pensar. O melhor, e muitas vezes o pensei, é fugir. Fugir para
longe dali. Mas nunca fugi. Sempre achei que era especial, e que a minha
especialidade era defrontar a morte. Via-a vezes suficientes para não temê-la. Não
a temo. Ela vem, chega devagar, a chama lenta inicia primeiro por amarrar-se às
botas, depois vai subindo pelas calças, sinto o calor trespassar o meu corpo, o
cheiro a queimado, a carne queimada, mas não a temo. Enfrento-a como a
enfrentei toda a minha vida. Ei-la aqui: em mim. Chegou. Finalmente vou
encontrar-me com o Pedrito.
edit
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